segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Torturas de Natal

Os irmãos Cláudio e Caio (o mais alto)

Cada vez que olho esta fotografia tenho uma espécie de susto, e penso obviedades do tipo: "Meu Deus, o tempo existe!". Tirada no Natal de 1956, ela tem – cruzes! – 34 anos.

Todo Natal, era sagrado, minha mãe emperiquitava a mim e a meu irmão Cláudio com modelinhos de linho branco e odiosas meias soquete, com elásticos eternamente frouxos, que acabavam escorregando patéticos pelas canelas finas – e chamava o fotógrafo. Não era nada simples chamar um fotógrafo naquele tempo, ainda mais o "Seo Fininho".

"Seo Fininho" era magro como um aspargo, branco como a polpa das peras que começavam a amadurecer no quintal. Além disso, tinha a alma delicada e era o único fotógrafo de Santiago do Boqueirão. Tão requisitado que, dizem, às vezes era chamado até para fazer fotos na Argentina, do outro lado do rio Uruguai. Por isso mesmo, era preciso chamá-lo às três da tarde para que aparecesse lá pelas cinco ou seis. Durante todo esse tempo, interminável para Gremlins de sete, oito anos de idade como nós – eu e Cláudio ficávamos enfatiotados e absolutamente proibidos de tocar nos brinquedos colocados ao pé da árvore. Era horrível. Sim, porque no 25 de dezembro à tarde simplesmente toda a molecada estava deitando e rolando pelas ruas da cidade com os brinquedos ganhos na véspera. E nós ali, presos naquelas armaduras de linho branco, com golas abotoadas até o pescoço.

Embora – ou por isso mesmo – tivesse apenas sete ou oito anos de idade, eu já era capaz de ódios profundos. O suor escorria por baixo do paletó (a gente dizia trajo), as meias escorregavam canelas abaixo e o ódio pelo pobre "Seo Fininho" fervia n'alma, assim mesmo com apóstrofe. Só que, fazer malcriação, nem pensar: éramos filhos de Dona Nair, a primeira das dez mais elegantes da cidade, do seu Zaél, orador oficial do Clube União Santiaguense e, como se não bastasse, netos do ex-prefeito Manuel Abreu e de Dona Zaira, diretora do Grupo Escolar Apolinário Alegre, leitora voraz de Machado de Assis. Ou seja, para nossa desgraça, tínhamos que ser finíssimos, exemplo de educação, elegância e bom-comportamento para toda a cidade. Não entendo como, mas ninguém suspeitava de nossa bandidagem, capaz de loucuras como soltar uma galinha do mezanino no Cine Imperial, em pleno suspense do seriado na matinê de domingo. O mocinho amarrado nos trilhos do trem e aquele cá-cá-cá de penas voando em todas as direções, enquanto nosso primo Beto gritava "Fogo! Fogo!'.

Nesse Natal – e olhando a foto, percebo que a árvore não era dessas de plástico de hoje, mas de pinheiro autêntico –, quando "Seo Fininho" chegou, nem eu nem Cláudio aguentávamos mais esperar. Hirtos, obedecendo às ordens de "olha o passarinho! agora, sem se mexer! não pisca, guri!” o jeito que encontrei de expressar o mau- humor foi arregalar os olhos. Meu irmão deixou cair os ombros de tanto rir. Tarde demais: "Seo Fininho" já tinha nos gravado para a posteridade.

Fico olhando os brinquedos a nossos pés. Engraçado, não lembro de quase nada, à exceção do carrinho de madeira com que transportei muita terra, fazendo cidades de areia no fundo do quintal e bonecos de barro que rachavam irremediavelmente quando colocados ao sol para secar. Na verdade, eu nem ligava muito para brinquedos. Já andava escrevendo algumas histórias, lendo Érico Veríssimo escondido, e tenho certeza que lembrava ainda do acontecido impressionante de dois anos antes. Foi no dia em que Getúlio Vargas suicidou-se, e eu perguntei a vovó, que chorava sem parar: "Vovó, o que é mesmo um presidente?" Ela respondeu: "É assim como uma espécie de pai de todo mundo”.  Até hoje, fiquei com isso na cabeça. A sensação de traição, naturalmente, tem sido medonha nos últimos 36 anos...

Mas, por trás das desilusões políticas, ficaram as fotos dos Natais, o presépio com casinha de papel, os galhos verdadeiros dos pinheiros, a certeza de que, naquela tarde, havia sol lá fora, e uma pergunta inquietante: o que será que a vida fez com o pobre do "Seo Fininho"?
                                                             
                                            Revista AZ – dezembro de 1990

   *Gracias, Lara! 

Feliz, feliz Natal. Merecemos


Amanhã à meia-noite volto a nascer. Você também. Que seja suave, perfumado nosso parto entre ervas na manjedoura. Que sejamos doces com nossa mãe Gaia, que anda morrendo de morte matada por nós. Façamos um brinde a todas as coisas que o Senhor pôs na terra para nosso deleite e terror. Brindemos à vida – talvez seja esse o nome daquele cara, e não o que você imaginou. Embora sejam iguais. Sinônimos, indissociáveis. Feliz, feliz Natal. Merecemos.

Páragrafo final de Mais Uma Carta Para Além dos Muros, publicada no Caderno 2 do Estado de S. Paulo na véspera do Natal de 1995, o último Natal de Caio Fernando Abreu por aqui. Está no livro Pequenas Epifanias. Sim, o blog é para escritos do Caio F. inéditos em livro, mas esse texto pediu, implorou para ser publicado. “Feliz, feliz Natal. Merecemos”: Caio F.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Ângela e Cauby: para roubar uma lágrima furtiva



Tenho uma tia chamada Vilma. A Vilminha, como a chamam até hoje as freguesas de costura, ou Pavima para nós, seus 500 sobrinhos. Solteirona, romântica, alucinada, tia Vilma amava no ar. Nunca se soube de um namorado seu. Tia Vilma lia pilhas de fotonovelas, e cantava. Ah, como cantava, derramando vezenquando uma lágrima furtiva. Me ninava nas noites frias, com seu repertório heavy: Dalva de Oliveira, Nora Ney, Linda Batista. Ao invés de Bicho Papão, dê-lhe Risque; e tome Vingaça, ao invés de Boi da Cara Preta. Com dois, três anos, eu dormia no colo virginal Pavima, ouvindo Ninguém me Ama. Com cinco ou seis, cantava com ela obras completas de Lupicínio Rodrigues. Essas coisas marcam fundo, vocês sabem. Podem marcar para sempre, gravemente até: fazem a fortuna dos psicanalistas quando a gente fica taludinho...

E Angela e Cauby, Pavima cantava. De Angela, muito Cinderela. Cauby, puro descorno, ela adorava. Lembro de uma porta interna de guarda-roupa – lembro mais, do mosquiteiro suspenso, de filó branco, sobre a colcha de renda também branca (quarto de moça), da janela aberta sobre o pátio cheio de begônias – e daquela porta interna do guarda-roupa com fotos de Cauby e Sandro Moretti. Cauby de bigodinho, orelhas meio de abano. Fino, sóbrio. Usasse faca, tia Vilma puxaria a dela, bem afiada, se alguém ousasse chamar Cauby de “maricão”. E como chamavam!

Tivesse eu Pavima por perto – e não lá nos ermos de Itaqui – hoje à noite a levaria para assistir Cauby e Angela em As Vozes. Talvez, suprema perversão, conseguisse fazê-la beber pelo menos uma vodka. Não, não me atrevo a imaginar tanto. Um singelo copo de vinho, branco naturalmente – quem sabe? Eu ficaria de porre total, lógico, e falaríamos de todo esse tempo que se foi, e dos que morreram, e dos que descaminharam, dos que a vida feriu fundo, talvez a velha – muito velha – e boa – boa no sentido vasto da generosidade – Pavima revelasse então seu grande segredo indizível. Que deve haver um, fatal. Sobre uma história que não houve. Homem casado, talvez? Um cunhado, um oficial do exército, um estudante pobre? Que vil sedutor, meu Deus?

Ao som das vozes de Angela e Cauby, eu e Pavima. Eu ficaria pensando qualquer coisa meio longa e complicada, como esta, assim: amar de paixão tresloucada ou detestar com as mais recônditas fibras do self, achar breguíssimo ou tão brega, mas tão brega que (como o princípio zen do yin e do yang) chega a ficar requintadamente chique, qualquer destas atitudes, intelectuais ou emocionais, em relação a Cauby e Angela não tem nada a ver. Se eu pudesse ver, do outro lado da mesa, os olhos muito cansados e quase azuis de tia Vilma por trás dos óculos de lentes grossas, teria ainda mais certeza que Cauby e Angela pairam infinitamente acima dos nossos pobres e preconceituosos padrões críticos.

Mas claro que, se eu quiser, posso colocar imediatamente o disco dos Inocentes e acabar com esse clima. Mas é este clima que não acaba como não acabam Angela e Cauby, as vozes que só por soarem, independente do que dizem, trazem de volta o passado de um país inteiro. Fico remexendo à toa em fotos e recortes antigos. Anoto os nomes dos oito irmãos da ex-operária Abelim Maria da Cunha (Angela): Abdmar, Abiezer, Ablair, Abiail, Abdiel, Abmael e Abedil. Parece uma oração. Encontro um elogio de Louis Armstrong, outro de Elis, à voz de Sapoti (e aquele agudo?). Vou mais fundo, até encontrar – juro – o registro de uma dança inteiramente dark de Cauby, em 1962. Detalhes não posso dar. Mas é forte. Aliás, com suas antenas mutantes, o Supla pegou esse lado do Cauby. E Elis, quando gravou com ele o infernal Bolero de Satã: “Agora me assalta a aflição de chorar louco e só de manhã”.

Tia Vilma/Pavima/Vilminha teria hoje talvez uma das mais belas noites de sua vida em sépia. Ficaríamos numa mesa ao fundo, cúmplices. Tenho certeza que ela cantaria junto Vida de Bailarina, bem baixinho. E fingindo limpar os óculos, enxugaria muito dissimuladamente – mas não tanto que eu não percebesse – outra daquelas furtivas lágrimas.

                             OESP – Caderno 2, Sexta-feira, 6 de junho de 1986





quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Carlos chega ao céu


                                             
                                               E, olhando aquele nuvenzal
                                               todo, comenta: “Gente, não é
                                               que virei mesmo eterno?”

Lá no céu, Cecília Meireles acorda cedinho. Mais cedo ainda do que de costume, que ela gosta de espiar os querubins tontinhos de sono. Mas hoje é dia especial. Cecília prende os cabelos, depois toma sua homeopatia (será Dulcamara? Daqui não dá pra ver – pode até ser Stramonium) e lava devagar o rosto na água do arco-íris. Bebe seu chazinho de pétalas de rosa branca – amarela não, que dá azia. Escova devagar as asas, pluma por pluma. Só depois de bem bonita é que bate de leve na porta da nuvem ao lado. Dentro, um resmungo mal-humorado.

É Vinicius de Moraes, que virou a noite com o arcanjo Gabriel, conhecendo as bocas da zona da Ursa Maior, aquela louca pirada. Mesmo de ressaca, o poetinha acorda. “È hoje”- sussurra Cecíliam na janela que Vinicius abre, ainda de pijama, as asas desgrenhadas, um bafo de estrelas cadentes que Cecília até disfarça, vira o rosto. Vinícius se espreguiça: Ô, xará, não é que é mesmo hoje?”. E vai correndo se aprontar.

De braços dados, os dois vão bater à porta da nuvem de Manuel Bandeira. Mas nem era preciso. Manuel já está aceso, debruçado na janela, o nariz um pouco vermelho, fungando e tomando o café quente que Irene acabou de preparar. “È hoje” – dizem Cecília e Vinicius. Manuel funga: “E eu não sei, gente? Daqui a pouquinho”. Os três ficam em silêncio, o coração deles começa a bater no mesmo compasso (dodecassílabo? daqui não dá pra ouvir direito). Então eles olham para baixo, em direção ao planeta Terra, que gira e gira, meio bobo de tão azul.

Aí uma nuvem dourada lá embaixo começa a ficar cada vez mais dourada, a chegar cada vez mais perto. Brilha tanto que os três quase se assustam, até reconhecerem São Pedro na direção. Que pena, não dá mais tempo de chamar Pedro Nava. A nuvem aterrisa, São Pedro abre a porta. Um pouco encabulado, atrapalhado com as asas, cabeça baixa. Carlos Drummond de Andrade desce e põe os pés no céu. “Não é que virei mesmo eterno?” – comenta, olhando aquele nuvenzal todo. Então vê os três. Tanto tempo, pois é, tanto tempo, pensei que nem vinha mais. Cecília, você não mudou nada, e essa barriga, Poetinha? não toma jeito, curou a tosse, Bandeira? tá mais magro, Carlos, e a Dolores? Vai bem, mandou lembrança, qualquer dia chega por aqui. Irene traz mais café, bem preto, bem forte. Vinicius dá um jeitinho de virar no café uma talagada de uísque da garrafinha que carrega sempre, disfarçada sobre a asa esquerda. Os quatro brindam, olhos molhados de saudade satisfeita.

Depois olham pro mundo aqui de baixo, que gira e gira, todo azul, assim de longe, e esperam um pouquinho, enquanto bebem o café, até conseguem localizar, entre as nuvens, a América do Sul. Custa um pouco para encontrarem, quase no extremo sul dessa América, um pontinho luminoso chamado Porto Alegre e, bem no centro do coração dessa cidade, um velhinho de cara sapeca, parado em frente a um porta-retratos com a foto de Bruna Lombardi. É o Mário Quintana – eles sabem -, ou será o Anjo Malaquias (isso nunca ninguém soube)?. Cecília, Vinícius, Manuel e Carlos sorriem mansinho, espiando Mário lá do céu, lá de cima.

Mas à terra – tão azul assim, vista de longe, vista de cima – eles olham com pena. Sabem que pelo menos metade deste azul todo, depois que eles se foram, brota dali, do quartinho do Mário. Aí suspiram, tadinho, que barra! Um anjo torto vem pedir autógrafo de Carlos. “Desguia” – avisa Vinícius. – “Um chato, maior aluguel.” Carlos pergunta de Maria Julieta. Manuel diz que leva ele até lá. Cecília tem um almoço com Clarice e Ana Cristina. Vinícius não sabe se dorme mais um pouco ou se pega o Leon Eliachar para irem até a cada da Elis – será que já acordou, a diaba? -, tá com samba novo na cabeça, precisa cruzar com a Clementina.

Cá embaixo, no centro do coração gelado do pontinho luminoso chamado Porto Alegre, pleno agosto, Mario Quintana abre a janela, olha para cima e dá uma piscadinha.

Danados, pensa, que danadinhos. O dia parece tão cinzento que não resiste à tentação de escrever um poema. Bem curtinho, bem feliz. Entre lá e cá, girando e girando sem parar, feito louca. A Terra também não resiste. De puro gosto, fica ainda mais azul – você viu?
         
                                       OESP - Caderno 2, Quarta-feira, 26 de agosto de 1987



*O blog traz escritos de Caio Fernando Abreu inéditos em livros. Esse não é. Está no livro Pequenas Epifanias e posto aqui para comemorar: Hoje faz 110 anos que Carlos Drummond de Andrade nasceu e essa crônica é tão linda. Depois de um tempo longe das livrarias, Pequenas Epifanias foi relançado pela Editora Agir (capa ao lado). É uma seleção (organizada por Gil França Veloso) das crônicas que Caio F. escreveu no Caderno 2. É daqueles livros pra ter, ler e reler, sempre com o prazer das descobertas.



terça-feira, 16 de outubro de 2012

Eu quero biografar o humano do meu tempo


O autor falou de outos escritores e da produção literária em entrevista que nunca foi publicada


Kil Abreu

Em seus últimos anos, o escritor Caio Fernando de Abreu dizia estar em busca de um texto mais “solar”, mais aproximado da linguagem poética. Foi o que ele revelou nesta entrevista inédita, à época do lançamento do romance Onde Andará Dulce Veiga, em setembro de 1990.
Caio Fernando Abreu falou ainda dos autores que o influenciaram, sobre as condições da crítica e a atual produção literária brasileira.

Seus personagens estão sempre enrolados em uma temática urbana e atual. Como você avalia a preocupação do escritor com a contemporaneidade?
Penso no escritor sempre como fotógrafo do seu tempo, embora não tenha essa preocupação deliberada com a contemporaneidade do texto. Acho que qualquer preocupação em dirigir a obra para o contemporâneo é extra-literária. Por outro lado, sinto-me extremamente comprometido com as coisas que minha geração conheceu. Vivi os anos 50, o existencialismo, o movimento beatnik. Mas vivi também, graças a Deus, o movimento hippie, profunda e sonhadoramente. Então, no momento em que minha literatura tem uma marca forte de contracultura, é porque ela fatalmente está definida por essas experiências.

Alguns críticos identificaram em sua obra uma influência decisiva herdada de Clarice Lispector. Você assume tal influência?
Concordo, mas acho que essa análise é redutora. Sofri, sem dúvida, grande influência de Clarice Lispector, mas também de Érico Verissimo, Graciliano Ramos, Virginia Woolf e, mais recentemente, de John Fante. À maneira de Bob Dylan, minhas influências são todo o meu ato de estar vivo. Tudo que eu vi e vivi pelas estradas, todas as pessoas que cruzaram o meu caminho e, ainda, coisas como o jazz, a pintura de Van Gogh, a dança de Pina Bausch.

Em seus contos há sempre muitas citações que apontam para o misticismo. De onde vêm essas referências?
Certa vez pedi ao Paulo Coelho uma definição de magia, e ele respondeu dizendo que magia é o mistério. Acredito em Deus e em muitas formas do mistério. Sou astrólogo, embora não profissional, há 20 anos. Tenho uma curiosidade imensa de saber por que estou vivo, o que significa o céu, o que significa morrer. Portanto, é natural que em meu trabalho estejam presentes todas essas ânsias filosóficas exaltadas. Muitas vezes o que torna digna a vida de um homem é o fato de ele olhar para o céu e dizer: “Meu Deus, que coisa imensa...” E perguntar: Por que estou aqui?” Toda forma de criação artística é uma maneira de procurar essas respostas. Nesse sentido, minha literatura busca um caminho cada vez mais “solar”, o caminho da clareza, da concisão, da beleza. É vaidoso dizer isso, porque acho que a poesia é a linguagem mais nobre, mas eu gostaria que o meu trabalho se aproximasse da linguagem poética.

Com Morangos Mofados você assumiu um dos maiores sucessos editoriais da década de 80, a exemplo de outros escritores cujos livros permanecem entre os mais vendidos. Isso define uma valorização da literatura criada no Brasil?
Em geral, existe um grande preconceito contra o escritor brasileiro, que começa com o editor, passa pelo livreiro e chega inevitavelmente ao leitor. Uma outra coisa muito característica do Brasil é que o povo tem vergonha de ser brasileiro. Então, tudo aquilo que reflete sua face ele rejeita. Os suecos detestam o cinema de Bergman, que é a alma sueca. Aqui, o autor tem de se multifacetar e, para ver seu livro editado, tem de trabalhar muito. Acho que qualidade existe. Falta respeito pelo escritor.

A recorrência a determinado universo temático levou muitas pessoas a identificarem em seu trabalho as características que definiriam uma “escrita gay”. Você concorda com a existência dela?
Não existe literatura gay. A literatura ou é boa ou má literatura. Naturalmente que os escritores homossexuais têm algumas características, como as autoras mulheres. Mas considero toda essa discussão muito perigosa, porque é uma tentativa de colocar as coisas em prateleiras, para que elas não sejam perturbadoras. O meu trabalho é sobre a condição humana e absolutamente tudo cabe dentro da condição humana. Eu gostaria que uma pessoa, ao ler um livro meu, percebesse a dimensão disso, e não ficasse procurando classificações.

E a crítica, como se comporta em relação ao seu trabalho?
Como disse Oscar Wilde, quando os críticos divergem, o criador está de acordo consigo mesmo. Tenho experiências malucas em relação à crítica. Quando lancei Triângulo das Águas, por exemplo, no mesmo sábado saiu na Veja uma crítica demolindo o livro e na revista Isto É uma crítica dizendo que era o melhor livro brasileiro da década. O problema é que a crítica, principalmente a jornalística, é feita às vezes por pessoas incompletas. Isso a torna menor. A maioria dos bons críticos está no circuito universitário, como Luiz Costa Lima, Flora Sussekind, Silviano Santiago, Heloisa Buarque de Holanda.

Além dos contos, você também escreveu algumas peças para teatro. Como pensa a criação dramatúrgica?
Eu fui ator, em Porto Alegre, durante algum tempo. Então, tenho uma paixão antiga por teatro, mas atualmente não me sinto à vontade, acho chatíssimo. Não consigo ver nada, além de Antunes Filho e Gerald Thomas, que adoro. Muitas vezes parece que a forma teatral está um pouco gasta. Penso em um teatro simples, sem excessiva dramaticidade.

Em sua opinião, quem são os escritores brasileiros mais originais de nossa época?
Para mim, o mais importante, o mais original, o mais maluco e incendiado de todos é a Hilda Hilst. Eu nunca conheci uma escritora tão tomada pela paixão da palavra como a Hilda. Ela é bárbara. Gosto imensamente de João Ubaldo Ribeiro, Sergio Sant’Anna e Lya Luft, que escreve uns livros densos, misteriosos, uma espécie de gótico da realidade brasileira. Acho também que a poesia que se faz no Brasil, neste momento, conta com nomes da melhor qualidade, como Rubens Rodrigues Torres Filho, Armando Freitas Filho, Antonio de Francheschi. Vendo essa gente toda, às vezes me pergunto se escrever não é inútil, porque tenho a impressão de que não estou colaborando socialmente. Aí lembro de uma coisa que meu terapeuta falou, certa vez. Ele me disse que os escritores são biógrafos da emoção. E se daqui a 50 anos alguém quiser saber o que as pessoas sentiam nos anos 90 pode encontrar algumas respostas, talvez na literatura. Então, eu quero biografar o humano do meu tempo. Se conseguir fazer isso de uma forma que enobreça o homem, vou me sentir feliz, sereno. Acho que serenidade é uma coisa importante.

                                             OESP - Caderno 2, Terça-feira, 27 de agosto de 1996

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Cor de rosa, uma ova!



                                                  Marianne Faithfull chega
                                                 quietinha, carregando um
                                                 forte sotaque de cabaré

Cuidado, meu amigo, vai doer. Se você é daqueles que acham que a vida é um mar de rosas cor-de-rosa, mantenha distância. Ou vá ouvir a Xuxa. Se você também não quer ver maculada aquela imagem da moça Marianne Faithfull, musa da swingin’ London nos anos 60, groupie dos Rolling Stones que passou na cara todos, estrelou filmes com Alain Delon e foi consagrada pela mídia da época como a garota símbolo da ousadia & liberação – não, melhor não ouvir este dilacerante Strange Weather (WEA).

Mas, se você não tem medo de descobrir um dos discos mais bonitos lançados no Brasil este ano (e por que desespero, amargura, tristeza, desamor, solidão, não podem ser belos? Em pleno 1987?), caia de boca no blues de Marianne. Depois de uma tentativa de suicídio, envolvimentos com a polícia por causa de drogas (nada soft: heroína no duro) e pântanos de álcool, ela salvou-se não pela conversão a alguma seita brega, mas pela música. Sim, arte salva. Ou consola. Ou torna pelo menos suportável.

A foto em preto e branco da capa mostra um rosto ainda jovem, mas meio devastado (lindamente devastado). Com esse rosto, Marianne Faithfull joga sua voz grave, metálica, de negra velha, em 11 canções de clima pesado de cabaré. Lembra às vezes Lotte Lenya, mais frequente a deusa Marlene Dietrich. Uma Dietrich que tivesse atravessado aqueles velhos bons tempos de rock, sexo e drogas para chegar para chegar, depois do punk, ao som de New Orleans, onde começou o blues. Fumaça de muitos cigarros, bebidas fortes – e a certeza de que “desde o meu nascimento eu tenho sido uma estranha neste mundo” (em Stranger on Earth, regravação de um clássico de Dinah Washington, que fecha o disco).


Cheia de fé, Marianne Faithfull relembra Billie Holliday em Yesterdays, passeia sem acompanhamento algum pela capela de Ain´Goin´ Down to the Well no Mo´, pelo hino religioso Sign of Judgment, revisa Bob Dylan (em I´ll Keep it With Mine), chega à sarjeta mais contemporânea de Tom Waits (um dos amigos que a ajudou a emergir da rebordosa, na faixa-título). E chega ao paroxismo do requinte (da crueldade e do talento, também) ao regravar As Tears Go By, aquele antigo sucesso de Mick Jagger, Keith Richards e dela mesma, nos longínquos 17 anos. Dói, e dói muito ver (ou ouvir) o tempo assim, tão nítida e implacavelmente perdido.

Com músicos impecáveis – segundo ela mesma, “os melhores de Nova York e alguns dos melhores do mundo” -, entre eles o baixista Fernando Saunders e bateirista J.T. Lewis, integrantes da banda de Lou Reed, a corajosa Faithfull conseguiu os cúmplices e o clima exato para encarar de frente a própria amargura. Claro, sonhos quebrados sempre doem. Mas talvez seja mais saudável contemplar os cacos e tentar compreender o quebra-cabeças do que comprar uma passagem para a Disneylândia.

               OESP, Caderno 2 - Quarta-feira, 21 de outubro de 1987






quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Os irmãos, juntos para sempre




Cartas a Théo é um clássico. Muito circulou lá pelos anos 60, em edições em inglês, francês e espanhol ou “português” de Portugal, tendo na capa a reprodução daquele quadro de Van Gogh – com a cama estreita e a cadeira de palha. Mas só este ano a editora L&PM lançou o livro (300 páginas).

Theodore Van Gogh – o Théo do título – era o irmão quatro anos mais moço de Vincent, numa família de seis filhos. E foi a ele, irmão, amigo, cúmplice e muitas vezes doublé de mecenas, que Vincent escreveu cartas durante toda sua vida. Desde 1873, em Londres, quando tinha apenas 20 anos, até 1890, numa carta escrita pouco antes de tentar o suicídio com um tiro no coração. O tiro atingiu a virilha, mas Van Gogh não resistiu, e morreu a 29 de julho. Nessa última, e tristíssima carta, ele dizia: “... em meu próprio trabalho, arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte – mas, pelo quanto eu saiba, você não está entre os mercadores de homens, e você pode tomar partido..”


Théo realmente não era nenhum mercador: ele apenas tinha a intuição (ou consciência?) do gênio do irmão meio louco. Logo após a morte de Vincent, Foi Théo quem organizou uma grande exposição de sua obra. Em vida, Vincent só havia vendido um quadro. Théo ainda muito faria pela memória e pela obra do irmão, mas atacado de paralisia, morreu menos de um ano depois de Vincent, em janeiro de 1891. As cartas só começaram a aparecer, no Mercure de France, em 1893 – e no começo do século, aos poucos, começava a chegar, a consagração do pintor dos amarelos desesperados.

Túmulo de Vincent e Théo Van Gogh
As cartas de Vincent Van Gogh ao irmão Théo documentam toda uma vida de luta, de dor – e também uma relação que ultrapassou os limites do afeto familiar ou da solidariedade. Enquanto Théo casava, à procura de uma vida mais “arrumada”, Vincent despedaçava-se em bebedeiras, arrancando a própria orelha, às voltas com terríveis problemas econômicos e psicológicos. Como se fosse o alter-ego do outro: o equilíbrio de Théo, a loucura de Vincent.

Referências à complicada relação em Gaughin, ao processo de criação, dúvidas e inquietações – tudo que se passava na mente e na vida do pintor ficou documentado nos 17 anos que esta correspondência cobre. Uma cronologia detalhada no fim do livro avança até mais de meio século depois da morte dos dois: quando o nome de ambos já estava ligado para sempre. Seja nestas cartas, seja no cemitério de Auvers-sur-Oise, onde repousam juntos. E onde – quem sabe? – talvez exista algum girassol de ouro muito próximo do túmulo dos dois irmãos.
                           
                           OESP – Caderno 2, Quinta-feira, 18 de dezembro de 1986 

Para ler um trecho de Cartas a Théo no site da L&PM:

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Que mal faz moça bonita?



Lucia Peterle:  
Foi Gilberto Braga quem me viciou em telenovela. E Adalgisa Colombo quem me viciou em concurso de miss. Mas o que tem a ver? Bem, outro dia as duas coisas se juntaram num capítulo de Anos Dourados. Durante um chá, Tania Scher comentava que a recém-eleita Miss Botafogo levava muito jeito de conquistar o Miss Distrito Federal. Era de Adalgisa que ela falava. Delícia! Vocês podem até duvidar, mas me formei no ginásio com uma Miss Mundo. Uma futura Miss Mundo, claro. Naquele tempo, nos interiores brabos do Rio Grande do Sul, Lucia Peterle não passava de uma moça alta demais para seus 15 anos, com um pé enorme e aparelho nos dentes. Mudou-se para o Rio, virou Miss Guanabara, terceira Miss Brasil e Miss Mundo, em 1971.


Sentava perto de mim, era ótima aluna e – como éramos os dois compridíssimos – dançávamos muito twist. Mas antes de Lucia, eu já curtia o Miss Brasil. Começava a chegar junho, meu pai trazia toda tarde o Diário de Notícias e, às sextas, O Cruzeiro. Chegado o dia, tinha permissão para ficar na sala ouvindo o concurso pelo rádio – um rádio enorme, do tamanho de uma mesa. Frio de rachar, eu com um caderninho, anotando as medidas das moças e as minhas candidatas. Quase sempre acertava. Minha mãe tinha estranhas opiniões:  achava Adalgisa, por exemplo, muito solta. Ela gostava de Teresinha Morango, com seu ar de “família”. Concordávamos com Marta Rocha: luxo. Só que eu de repente caía em fixações malucas: enlouqueci por Denise da Rocha Almeida. Desclassificada no Miss Guanabara 63, voltou enxutérrima em 64, concorrendo por Brasília. Perdeu para Ieda Maria Vargas. Gaúcha, naturalmente. Denise deu escândalo, ameaçou impugnar o resultado. Garotinho, eu já tinha um fraco por bandidas... Dizem agora que o concurso perdeu a graça. Fico pensando coisas. Primeiro, que um certo tipo de feminismo tira muito o prazer da gente:  que mal faz moça bonita? E será que não foi a TV quem roubou muito daquela graça? Mil vezes mais estimulante você ouvir pelo rádio e imaginar, só imaginar. Ou será que tudo não perdeu um pouco a graça nestes tempos de Chernobyl? Quanto a mim, continuo achando miss um grande barato. Dá a ilusão de que tudo se recompõe, e tudo volta a ser meio ingênuo. E bonito. Hoje à noite vou estar outra vez firme, torcendo pela linda gaúcha Deise.

                 OESP – Caderno 2, Sábado, 17 de maio de 1986

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Aquilo sim é que era festa



Festa que faz sucesso em 85, tem que ter pela menos uma tentativa de suicídio, uma overdose, meia dúzia de traições, alguns tapas na cara e muitos escândalos.

Sempre quando pinta um tema assim geral para escrever, corro ao Aurelião tirar informações. Desta vez, foi lá que encontrei: “Festa. S. F. 1. Reunião alegre para fim de divertimento.” Aí parei e lembrei de um conto de Katherine Mansfield. Bliss (traduzido por Érico Veríssimo como Felicidade, mas talvez mais próximo da tradução de Ana Cristina Cesar: Êxtase), em que a personagem dá uma festa e, no final. surpreende o marido beijando uma de suas melhores amigas. A reunião-alegre-para- fim-de-divertimento desaba bruscamente.  Lembrei também daquela  festa de O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, que acaba num grande desastre. Moral da história: as festas, como os tiros, às vezes podem sair pela culatra... Bem, fui em frente no dicionário. E encontrei festança, festão, festeiro, festejo e até festarola, que achei lindo e não tem nada demais – uma festa como as outras. Mas na verdade, fui pensando, é que as festas não são mais como antigamente. Até ai, nada de novo: nada é mais como antigamente. Tenho um amigo que diz que festa, para ser considerada um sucesso, em 85, tem que ter pelo menos uma tentativa de suicídio, uma overdose, duas ou três separações-lancinantes, meia dúzia de traições, outra de comas alcoólicas, alguns tapas na cara e vários escândalos. Reunião alegre? Para fim de divertimento? Bom, cada um se diverte como pode. E talvez diversão – como aquela famosa definição de conto de Mário de Andrade – seja tudo aquilo que chamamos de divertido.

Pode ser. Venho de outros tempos. Tão remotos que, outro dia, dando uma palestra para adolescentes (quando me convidam, vou sempre: acho uma festa), perguntaram a minha idade e, quando falei bem claro trinta e seis, ouvi um ooooooh! de choque generalizado. Que traduzi por “nossa-como- esse-cara-é-velho”. Pois é. Então, minhas memórias mais distantes de festas remontam aos distantíssimos anos 50. E era outro papo. Lá, sim, no interior do Rio Grande do Sul, acredito que tivesse mesmo esse sentido de alegria & divertimento. Minha mãe era uma festeira exímia. Sabidíssima, ela. Como todo ano fazia parte da lista das 10 mais elegantes (sempre tirava o segundo lugar, só perdendo para uma certa Dona Marina Plada, ue ela odiava com todas as forças, embora jurasse ser  superior-a-essas-coisas), dar festas era um dos jeitos que ela tinha de angariar votos. Explico: para fazer a lista, o cronista social entrevistava todas as senhoras da cidade e, da votação, saiam as tais 10 mais. Democrático. não?

Pois Dona Nair Abreu tinha seu trunfo: uma quituteira fabulosa e exclusiva, a demolidora Tia Piba. Solteirona e feíssima, era prima de meu pai. Doceira de mil talentos, além de todos os cursos, hoje compreendo, seu grande segredo era jogar todo seu afeto de solitária nos doces que fazia. Não sei de onde tiraram o apelido de Piba – esquisito, mas bem menos que o nome real dela: Eponina. Além dos talentos culinários, Tia Piba contava também com um par de inesquecíveis olhos verdes, frequentemente marejados de lágrimas quando ouvia, principalmente, Gregório Barrios e Lucho Gatica. Ou Anísio Silva. Costumava cantar Quero Beijar-te as Mãos (quem lembra?) enquanto preparava seus quitutes.

Tia Piba se saía bem com os salgadinhos. Mas o forte dela eram mesmo os doces. Foi ela quem lançou na cidade umas japonesinhas absurdas, de cabelo feito com uma ameixa em passa, daquelas pretas grandonas, que ela abria numa das pontas. Depois, requinte dos requintes, com um pincel tão fininho que parecia ter um pelo só – e, lógico, era o único da cidade – pintava os olhos, o nariz e a boca de uma por uma. Dezenas de japonesinhas. Tia Piba também foi a lançadora dos doces caramelados, que eu nunca fui muito chegado – doces demais e complicados para fazer: a calda dependia de um certo ponto, que dependia do tempo, não podia estar muito úmido, senão “desandava” e não tinha jeito.

Uma festa, em casa – havia várias por ano, uma para cada filho, e éramos cinco, sem falar na do pai e na da mãe – começava vários dias antes. Tia Piba simplesmente mudava lá pra casa. Contratava uma ajudante, e nós ficávamos o dia inteiro atazanando as duas. Naquele tempo, raspas e restos realmente Interessavam. Os das panelas de Tia Piba, pelo menos, eram inesquecíveis. Ela só não gostava que comessem os doces prontos: contava um por um antes de dormir e, na manha seguinte, recontava. Rolavam as maiores cenas se faltava um. As costureiras da cidade também ficavam na maior agitação: todo mundo mandava fazer roupa nova. E ai de quem pintasse na festa com um vestido já manjado. Ficava falada. Ninguém indicava o nome dela para a lista das 10 mais. A própria Tia Piba aparecia radiosa. Lembro de um vestido dela todo justo até quase o joelho, depois abrindo num enorme babado de tule roxo. Saltos altos vermelhos. Nunca mais vi ninguém tão elegante.

É que, naquele tempo, não só havia roupa de festa como havia também um estado-de-espírito-de-festa. Eu ficava muito impressionado porque todo mundo mudava o jeito de falar no dia da festa. Parecia filme. Era uma overdose de delicadezas tipo por- favor-com-licençamuito-obrigado. Tia Piba: consagradíssima, às vezes se excedendo um pouco nas doses do indescritível ponche de frutas que minha mãe preparava com champanha, guaraná e não sei mais quê. Quando a noite avançava, as crianças eram mandadas para a cama. Mas sempre tinha um jeito de espiar: a festa virava baile. Afastavam mesas e cadeiras: rolavam altos tangos. Namoros começavam. Deviam terminar também, mas lembro mais dos que começavam. Todo mundo saía com um pratinho de doces para quem não tinha podido vir. A casa custava a voltar ao normal, as sobras da festa na geladeira. Até a próxima festa.

E era isso ai, já faz tempo. Por isso que agora fico um pouco chocado com as festas que a gente vai e, na entrada, já pedem dinheiro para comprar bebida. Sem falar numas portas de quarto fechadas que abrem para pouca gente, e sempre saem umas pessoas lá de dentro fungando ou com os olhos vermelhos... Eu, hein? Ainda tenho saudade daquelas Japonesinhas de negríssimos e deliciosos cabelos de ameixa. Onde andarão? Ou: onde andará o jeito mais leve que a vida teve, um dia?

                                         Revista Around, Junho de 1985
                                         *Gracias pela lembrança, Lara!


domingo, 9 de setembro de 2012

Por telepatia





                                               A Bela e a Fera, de Clarice Lispector

Para quem aprendeu a amar Clarice Lispector, este livro é uma verdadeira dádiva, além de documento importante para os estudiosos de sua obra. São oito contos inéditos, de um período que abrange 37 anos de ininterrupto, profundo e sofrido trabalho de criação literária. Os seis primeiros foram escritos entre 1940 e 1941, quando a autora tinha apenas 14 ou 15 anos* – antes, portanto, de sua estreia com o romance Perto do Coração Selvagem, em 1944. Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice, organizou esses originais, enquanto Olga Borelli (que já havia coordenado o póstumo Um Sopro de Vida) acrescentou os dois últimos contos escritos por Clarice, pouco antes de sua morte, em 1977.

Os contos adolescentes de Clarice pouco têm de adolescentes. Já se encontram, ali, alguns dos elementos dos vários livros posteriores: o mergulho psicológico, a presença da morte, o choque entre as realidades objetivas e subjetivas, a solidão e a incomunicabilidade humanas, a tentativa de penetração e desvendamento de camadas escondidas da alma – tudo isso está presente nestas seis peças que, quase espantosamente, podem ser lidas não apenas com curiosidade, mas com autêntico prazer.

No rapaz suicida (em História Interrompida), na adolescente desorientada que procura a consultoria sentimental de uma revista (Gertrudes Pede um Conselho), ou na mulher casada que foge do marido para ligar-se a outro homem (na pequena e densa novela Obsessão), podem ser localizadas as sementes das mesmas personagens que viriam a habitar seus livros futuros. Com a diferença que, aqui, Clarice ainda se preocupa com a “história”, que foi pacientemente desestruturando, até chegar em obras como A Paixão Segundo G.H. ou Água Viva.

Já em 1941, ela saia-se com ousadas inovações formais, como os dois pontos que concluem Mais Dois Bêbados. Cerca de trinta anos mais tarde, intrigaria os críticos com a simples vírgula que iniciava Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. E aos 14 anos era suficientemente lúcida e bem humorada para fazer ironias como esta: “No entanto, para quem leu um pouco e pensou bastante nas noites de insônia, é relativamente fácil dizer qualquer coisa que pareça profunda”.

CRISTALINA – A ironia é a marca principal dos dois últimos textos: Um Dia a Menos e A Bela e a Fera. No primeiro, uma virgem balzaquiana suicida-se quase por acaso, ao descobrir distraidamente a própria individualidade. No segundo, que lembra o sarcástico humor social de A Hora da Estrela, Clarice narra o patético e hilariante encontro entre uma grã-fina e um mendigo. “Justiça social” são as palavras que ocorrem vagamente à mulher, enquanto seus valores desabam e ela se descobre, também, uma mendiga: “Nunca pedi esmola, mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha”.

Clarice não gostava que os leitores fizessem esforço para lê-la. Não se considerava um “escritor racional”. Preferia estabelecer uma espécie de telepatia com o leitor, e o livro então lia-se como que por si próprio. Para quem a considera, ainda, uma escritora difícil, hermética, talvez A Bela e a Fera seja o meio mais fácil de estabelecer essa comunicação e entrar em contato com um universo onde é dito o indizível da sensibilidade humana. Nele, Clarice está mais cristalina do que nunca. E tão misteriosa e indefinível como sempre – “pura e cruel” como a luz do sol que descreve num conto escrito há quase quarenta anos.

A volta de Clarice, ainda que póstuma, reascende a esperança de que, dentro da literatura latino-americana, existia uma autêntica e expressiva voz brasileira. Europeia, requintada, minuciosa e misteriosa, Clarice permanece como uma das manifestações mais intensas do escritor nacional. E A Bela e a Fera adquire nova importância, quando lança raios de luz sobre todas as outras obras de Clarice, de A Maçã no Escuro a Um Sopro de Vida. Escrever, para Clarice Lispector, era um ato confundido com o próprio inventar da vida de cada dia. No campo da prosa, a escritora consegue aproximar-se, em termos internacionais, da elaboração de uma Marguerite Yourcenar, a autora de A Obra no Escuro. No campo nacional, é provável que Clarice seja o Carlos Drummond de Andrade do romance brasileiro. Como Drummond, ela jamais escrevia por vaidade, por ter uma “mensagem” a transmitir ou por desejar construir um objeto perfeito. Clarice escrevia como quem compõe música: escutando o ritmo do mundo, obrigada a vibrar junto com ele.
                                                         
                                                                Veja, 9 de janeiro de 1980

Nota: "A verdade também é que Clarice era deliberadamente misteriosa. Apagava rastros, diluía pistas. Ninguém sabe ao certo o ano de seu nascimento, na Ucrânia. Ela sempre disfarçava, mudava de assunto, confundia": escreveu Caio F. em Na Trilha dos Mistérios de Clarice http://caiofcaio.blogspot.com.br/2010/08/na-trilha-dos-misterios-de-clarice.html
A idade de Clarice Lispector permaneceu por anos um mistério. Hoje, sabe-se que ela nasceu em 1920 e, portanto, tinha 20 ou 21 anos “entre 1940 e 1941” quando escreveu os contos que Caio F. cita no início. 

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Adeus, agosto. Alô, setembro!



Mesmo aqui, no país bandido,
agosto sempre vai embora. E
setembro sempre volta, sim


Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este que nos deixou à meia-noite de ontem e pareceu durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Levou Drummond, levou John Huston, Gilberto Freyre. O mais patético: levou Pixote. Ao saber do assassinato (é as-sas-si-na-to mesmo que eu quero dizer) dele, além de sentir uma vergonha viscosa de ser brasileiro, fiquei pensando assim – Deus, o que é que está acontecendo com este país? Imagino a praça de guerra (Líbano perde) em que se transformou o Rio de Janeiro e, na trilha sonora, ficou ouvindo Lobão berrar “vida, vida, vida bandida”. Em 1987, Lobão tornou-se a mais perfeita tradução de Brasil. Um país invadido pela corrupção, pela barbárie, pela violência policial, pela bandidagem. Você vai até a esquina comprar cigarros e não sabe se volta vivo.

Falei disso a um motorista de táxi. Sobre Pixote, ele disse: “Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”. Sobra a guerra da polícia com os traficantes, no Rio: “Bandido tem mais é que morrer”. Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha bandido?  Se tivesse comida, tinha bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um mínimo de alguma coisa levemente parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça?”. Quem inventou essa violência desenfreada que tomou conta do País não foram os marginais – foram os poderosos. Se eu desculpo bandido? Desculpo sim. Não desculpo é marajá. Não desculpo Zé Sarney no comando desta barca de Medusa, navegando em mar de sangue – em direção a que abismo?  Ninguém sabe, temos medo.

Passadas as águas de agosto, ontem inaugurou setembro. E por não apostar no País, aposto em setembro (“se o mundo é um lixo, eu não sou”). De saída, tem uma coisa linda que eu vou contar pra vocês. É assim: tenho quatro irmãos de sangue em Porto Alegre, e – graças a Deus – talvez uns 20 irmãos de alma soltos pelo mundo. Esta semana, dois deles estão aqui, vindos de Porto Alegre para apresentar no Madame Satã um trabalho chamado Lenta Valsa de Morrer.

Ivan, Adriana e Eliane: Lenta Valsa de Morrer
Eles chamam-se Ivan Mattos e Eliane Steinmetz (Eliane é “a Gorda” – emagreceu, mas o apelido ficou), atualmente também conhecidos como “os loiros” porque, como diz o Bivar, oxigenaram um pouco. Ivan e Gorda são das pessoas  mais engraçadas que conheço, e das mais talentosas. Não estão mais cabendo em Porto Alegre, a cidade-carroça, e vieram mostrar esse trabalho para quem quiser ver. São textos de Clarice Lispector, do alemão Heiner Müller, do gaúcho Renato Campão – e também meus. Tudo isso embalado pela voz de Adriana Calcanhotto, uma supercantora (quem perdeu o show dela no Off, semana passada, dançou), com participação de Adriane Mottolla, uma moça muito chique, e figurinos de Zé Adão Barbosa, um moço também muito chique. Na direção, outro irmão de alma: Luciano Alabarse. Pinta lá pra ver. Eles vão gostar, você também.

Se estou fazendo propaganda dos meus amigos? Lógico, meu bem, você acha que eu ia fazer propaganda dos meus inimigos? Sinto/sei que, de cada vez que o horror arreganha os dentes – assassinam Pixote, o Rio vira Líbano -, se a gente estiver atento, no minuto seguinte a velha Dona Vida, essa senhora imprevisível e nem sempre respeitável, faz uma pirueta no trapézio para mostrar a outra face. Não a de megera medonha, sanguinária, mas seu avesso: a fada suave, revelando o talento de gente moça. Ivan, Eliane, Adriana, moçada que já nasceu com os militares no poder, sem esperança nem fé, rolando de rir de tudo, com um jeito insólito de captar o sério das coisas. Não o sério clichê, o sério careta – mas um olho novo de pegar o mundo. Esse jeito existe, eu já vi. Cada vez que olho para Ivan e Gorda, cada vez que ouço Adriana, ele está lá.

Como setembro. Mesmo aqui, no País Bandido, agosto vai sempre embora, e setembro sempre chega. Se você q      uiser, claro. Porque, como aquele motorista de táxi, você pode achar que bandido é bandido, tem que ser morto. Quanto a mim, acho que todo mundo tem mais é que viver. Ser feliz. Agora, dá licença, vou escancarar a janela, tomar um banho e me preparar para este setembro que ninguém vai sujar. Em mim, não mesmo.

                      OESP, Caderno 2, Quarta-feira, 2 de setembro de 1987


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A vida é uma brasa, mora?




Uma esquizocrônica
para Samuel Beckett.
Na forma do caos.

Nuvens radioativas, pacotes econômicos: nunca fomos tão felizes!  terroristas líbios, uma colagem de Vicent Kutka, qualquer ponto do sensível, ah: resgates, punks no metrô, copos de vinho tinto, um blues de Bessie Smith, sauna japa na Liberdade, trocar de lençóis na sexta, Anjelica Huston de chapéu negro, aquele olhar chiquérrimo sobre o mundo, táxis, táxis, alguém no JB referindo-se aos “esfuziantes-anos-80” (?), cortes na seleção, leves paranóias, mas eu sei onde estou metido, gangs juvenis, a frase de Beckett dando voltas na cabeça: nenhuma dor, quase nenhuma dor – isso que é maravilhoso, velhinhos tocando Olhos Negros no Brahma, cartão-postal de Paris na cabeceira, tons dourados, folhas mortas, como te amei e não disse, Giovanni guilhotinado por amor, imperceptivelmente chegar à próxima face depois desta, talvez desprezível, graves paranóias, o relógio da Paulista marcando trágico, lento & inexorável o fim de domingo, sinto falta de você, hi-fi com Fanta: astral Bukowski, geladas fotos sensuais de Pedro Fedrizzi, alguém me chamando de “tiete-bem-pensante” (?), mas não pensem que não sei onde estou metido, pessoas cirandando em torno de um posto, madrugada de sábado no Bexiga, engarrafamentos de trânsito, pressa dentro dos táxis, dragão tatuado no braço, muito busto, muita coxa, Hélio que vai para a Europa, yuppies na Oscar Freire, Bruna Lombardi, Diadorim, homem-mulher, feijoada no Supremo, nenhuma importância, só porque sei onde estou metido, outra vítima da AIDS, parem de me testar: sou legal, cara, pizzarias entupidas de criancinhas, táxis, táxis, atriz argentina joga-se pela janela, e se eu dissesse de repente e sem pudor eu te amo? Patricia em prantos ao telefone, de pura transgressão beber litros de água mineral em pleno Madame Satã, quem me seduz? olhar com medo, olhar com perdão, olhar com interesse, olhar com náusea e paixão, e de jeito nenhum compreender nada de onde se está desgraçadamente metido, telefones que não param de tocar, Rê Bordosa minha amada à beira do suicídio, não esquecer comprar Gilette G-II, que falta faz Ana C. meu Deus do céu, palavras lindas na letra M do Aurelião, repetir fascinado metâmero, metasterno, metereoscópio, paranóias desenfreadas, tudo que você quiser, e táxis, táxis, monóxido de carbono, amigos solicitando estranhíssimas cumplicidades, copos e copos de vinho tinto, ninguém dizendo meu-amor, suspeitas, censura interna outra vez, palavrão não pode, esse filme que já vi e por isso mesmo sei onde estou metido, uma carta que não chega nunca, nossa, como estou me lixando, vela branca prô Anjo da Guarda, bate outra, sal de frutas, pó de guaraná, candidatura de Gabeira, sen-si-bi-li-da-de-ex-ces-si-va, meu caro: honestidade, epidemias, vírus, pestes, dengues, devia vender mais caro minh’alma inestimável, Toninho ameaçado pelos skin-heads, nenhuma solidariedade, azia na certa amanhã de manhã, saudade, saudade inútil o tempo todo de qualquer coisa indefinida, de alguém desconhecido, investigar preço secretária eletrônica, ter certeza que em algum ponto do caminho se perdeu e ponto, e pronto, acabou, e para sempre, querido e não tocado jamais, mobilizado pela raiva, por favor me leva daqui para que eu me esqueça de onde sei que estou metido, corrompido até o último hímen, já temos um passado, meu amor, me convida pra jantar em tua casa, bota Billie Holiday baixinho, depois me dá um beijo na boca, bem molhado, irrecusável, um sonho com Hilda Hilst, o texto, o texto, traí meu destino, companheira, empurrado pela desordem, sobrevivendo ao naufrágio, agarrado mísero e adjetivoso a meu pedaço de madeira flutuante, e agora chega, chega, let it be, let it be, baby, que la vie, en rose ou em black no duro – é sempre uma brasa, mora: o caos é a forma.
Quanto a vocês, salve-se quem puder. Porque quanto a mim, querida, querido, queridos – eu? Ah: eu juro por todos os santos que sei muito bem onde estou metido.
               OESP – Caderno 2, Terça-Feira, 6 de maio de 1986