quarta-feira, 27 de julho de 2011

Querem acabar comigo


   A gente corre. Para ganhar
            Ou perder a vida? Resta cantar
        aquele velho Roberto Carlos
São nove horas da manhã de segunda-feira. Estou sentado aqui na escrivaninha, mas hoje não tenho nada a dizer. Quase nada. Ou o que teria a dizer são coisas que só interessam a mim, não a quem lê. Então, hoje vocês vão ter paciência comigo. Hoje tem sessão queixa.
Andei fazendo contas: há 13 meses escrevo aqui, uma vez por semana. São pelo menos 52 semanas, pelo menos 52 crônicas como esta. Eu acho muito. É que nem sempre consigo escrever sem sofrer um pouco. Mesmo quando até me divirto, sempre é necessário remexer um pouco mais fundo, e remexer mais fundo cansa. Ando cansado. Porque não é muito simples escrever, não é assim: você senta, põe papel na máquina e escreve. Às vezes não vem nada. Outras, vem confusamente. Só depois de escrever três ou quatro laudas, aparece uma frase – e essa frase é a coisa, o resto não interessa.

Escrevo geralmente aos domingos, ou às segundas de manhã. Mas desde a quinta ou sexta-feira começo a sofrer vagamente. Nos últimos tempos tem sido mais grave. Porque ando muito – digamos – espantado com o mundo, daquele jeito que só dá vontade de olhar para ele (às vezes nem isso), sem nenhum comentário a fazer. Escrevo lento demais, preciso de tempo para pensar, reler, reescrever. Um domingo inteiro nem sempre basta. Há 13 meses não tenho domingos – aquele dia em que os outros vão ao cinema, namoram, visitam amigos. Os outros, não eu. Eu fico em casa, escrevendo. O mais complicado é que, para escrever, é preciso ver o mundo. Aos domingos ou nos outros dias. Ir ao cinema, namorar, visitar amigos – essas coisas. Não se arrancam palavras do nada: as palavras brotam de coisas e seres viventes. Há 52 semanas, vivo muito pouco. Porque além dessa crônica, fico no mínimo seis horas diárias dentro do jornal. E jornal – quem não sabia, fique sabendo – acaba com a cabeça (e o corpo) de qualquer um.
Susan Sontag
Essa escassez de tempo está clara agora, pouco mais de nove horas da manhã de segunda-feira, na desordem absoluta sobre a escrivaninha. Pilhas de cartas não respondidas, livros que só comecei a ler e não consigo terminar (uma Susan Sontag aqui, um Edmund Wilson ali), se olhar para o lado há também pilhas de discos não ouvidos (conseguisse alguns segundos para aquele U2, aquele Raul Seixas...)  E a vida gritando nos cantos.

Os amigos se queixam: você não telefona, não aparece. Tem gente que pede release, reportagens, textos os mais diversos, apresentações para exposições, ler originais, e os que exigem coisas do tipo: você não vem ver minha peça? Como bom ascendente Libra, não sei dizer não. Digo sempre sim, depois não consigo cumprir. Cobram, cobram. Ultimamente, toda vez que o telefone toca, já sei: é alguém pedindo alguma coisa. Têm me pedido muito, ultimamente. E dado pouco. Normal: gente é assim mesmo.
Agora você me pergunta: bom, e daí? Daí que ando cansado. Hoje estou me permitindo escrever sobre este cansaço indivisível, sobre minha falta de tempo, sobre a desordem que se instaurou em minha vida. Por trás disso tudo, o mais perigoso espreita: a grande traição que estou cometendo, todo dia, comigo mesmo. Porque escrevendo assim, para sobreviver, não escrevo o que me mantém vivo – outras coisas que não estas.

Roberto Carlos
O relógio avançõu. Já cheguei às minhas 50 linhas semanais. Amanhã vamos embrulhar peixe na feira. Tomo um café, acendo um cigarro. Durante um minuto, fico pensando em parar.
Parar como param os monges budistas. Parar e olhar. Só um minuto. Pronto: agora tenho que sair correndo outra vez para ganhar a vida. Ganhar ou perder? Eu sei a resposta. Mas posso cantar baixinho um velho Roberto Carlos, aquele assim: “Querem acabar comigo/ isso eu não vou deixar”. Juro que não.
                  
                                                      OESP - Caderno 2 - 1987




quinta-feira, 14 de julho de 2011

De volta ao avesso do avesso do avesso


Numa rasante de dois dias e uma noite sobre São Paulo – não, não ficou mágoa dessa relação. Como esses casais que vivem brigando durante anos e depois, ao separar, percebem que deviam ter feito isso antes, pois se afastarem era a única maneira de continuarem amigos, da mesma maneira, olhei o Largo do Arouche e a cidade em volta do 13º andar do Hotel San Raphael.  Sem saudade nem vontade de voltar, mas feliz ao perceber que na “cidade em escombros”, como diz Ignácio de Loyola, um de seus amantes mais críticos, a pequena praça redonda do largo está cheia de flores bem-cuidadas e as bancas continuam verdes.


A boa impressão continua durante a gravação para o programa de Marília Gabriela. A produção é gentil e, de repente, sem que elas mesmas saibam, vejo reunidas no mesmo trabalho pessoas que conheço de lugares diferentes e não via há muito tempo: a própria Gabi, minha ex-vizinha na Haddock Lobo, leitora entusiasmada de Onde Andará Dulce Veiga?, Ninho Morais, o diretor do programa, tempos de José Marcio Penido, Aninha Braga e Samuca Jagger na Girassol da Vila Madalena; Reinaldo Moraes, cronista do programa, de outros tempos na rua Alagoas, noitadas inesquecíveis com Mario Prata, Maria Emilia Bender, Ruy Fontana Lopes, Ana Cristina César. De repente, na platéia, Silvia Poppovic e sua beleza barroca para ajudar ainda mais o astral. Ah São Paulo, penso, e seu grande luxo que em cidade nenhuma existe igual: as pessoas. Pessoas sérias, fiéis, leais, solidárias, discretas, trabalhadoras.
Com Gil Veloso, que é tudo isso também e vivem em Sampa, saio da TV para ver Nanni Moretti e o humor tristíssimo de seu belo Meu Caro Diário. A Paulista é sempre comovente à noite em seu mar ilusório de neón, as garçonetes do quiosque Viena no Conjunto Nacional continuam lentas, e no Cinearte, um dos meus preferidos, mudou a sala de espera, levemente claustrofóbica agora. Saio fascinado por aquele passeio de vespa na praia onde foi assassinado Pasolini, ao som – reconheço espantado – do Köln Concert, de Keith Jarret.

Ileana Kwasinski
Na Manhã seguinte uma saudade súbita me fere ao sol, atravessando a rua em direção ao Almanara, da Oscar Freire, lembro com força e sem planejar de Ileana Kwasinski. Da esplêndida atriz que era, e pôde mostrar isso em Depois do Expediente, peça de um alemão contemporâneo, não lembro o nome, sem uma única palavra ou como o rei de A Vida é Sonho. Não sei se Ileana era paulistana, mas era também, como dizia, séria, fiel, solidária, discreta, trabalhadora. E de um talento que não creio tenha sido explorado até os últimos recursos, talvez inesgotáveis. Sim, estamos partindo, penso sem amargura, mastigando meu homus com suco de laranja. E ainda nem sei que Rofran Fernandes também morreu...

Ah São Paulo, tanta gente lutando numa paisagem urbana que não ajuda na luta, enumero no caminho para o aeroporto, os encontros carinhosos com Gisela Arantes, com George Freire. E aos poucos, pela janela do táxi, o susto antigo que volta. O manto de fuligem envolvendo o topo dos edifícios, transformando o obelisco do Ibirapuera lá embaixo da 23 de Maio numa espécie de escultura abstrata cuja parte superior se perde num céu de sujeira. Os olhos ardem, começo a tossir. Muito sereno o motorista comenta bem natural que, em breve, todos em São Paulo terão que usar máscaras de oxigênio para sair às ruas. Sim, concordo, em breve. Hoje, ontem, já.
E não sinto saudade, percebo da janela do avião. Nenhuma nostalgia de estar lá. Nenhum rancor. Bom ir, bom voltar, bom saber que aquelas pessoas boas continuam lá, outras também, outras não mais. Suspiro aliviado: sim, esse casamento meu com Sampa acabou na hora certa. Mas te desejo, de longe, felicidade. Me deseje também. E saúde, meu Deus.
                       OESP – Caderno 2 Domingo, 30 de Abril de 1995

terça-feira, 5 de julho de 2011

Viva o império das coroas magníficas


Paris – Há brasileirices que a gente só sente falta longe do Brasil. Foi assim, por exemplo, com a cantora Alcione, a quem nunca dei muita bola até certa tarde de 17 graus abaixo de zero, em Londres, quando Cida de Assis colocou  no toca-fitas “não-posso-mais-alimentar-essa-ilusão-tão-louca-que-sufoco”. Soluçamos no ombro um do outro, depois enfrentamos a neve para comer um junky-food indiana na esquina de Hampstead, cantarolando a Marrom. Ao molho de curry, que assim é a vida.
Desta vez, sem vergonha na cara, confesso: morro de saudades de Fera Ferida, a novela de Aguinaldo Silva. Sou um telenoveleiro apenas razoável: não suporto as das 18h, tola demais; a das 19h vejo enquanto pico cenouras, sem prestar muita atenção, embora Patricia Travassos tenha o dom de me arrancar dos confins da cozinha. A das oito, que sempre foi às oitro e meia, sempre me deixa mais atento porque vale como termômetro-do-emocional-coletivo-tupiniquim. Principalmente se for Gilberto Braga, aí não desgrudo mesmo. E trato mal quem telefona durante. Sensibilidades raras e especiais, como Cida Moreyra, nessas fases tem a sabedoria de ligar apenas durante intervalos comerciais.
Fera Ferida começou irritante. Já na primeira cena, a soma das idades dos atores beirava a idade do Brasil desde Cabral e aquele fatídico dia. Os tiques, e aquela coisa jecóide, ai, lá vem sotaque nordestino, lá vem vestido de chita... Mas Aguinaldo Silva, como bom telenovelista e romancista (Leiam Lábios Que Beijei, Siciliano), foi esquentando aos pouquinhos. Quando a gente dá por conta, pronto: está viciado. Só depois de meses Fera Ferida deixou bem claro porque é excelente: tem um time de atrizes e personagens femininas fora do comum.

Nada de modelões arfantes ou jubões crespos (o único jubão é a figura mais apagada de todas, Claudia Ohana): Fera Ferida é o império das coroas magníficas. Pois não é que, sem sentir, comecei a dizer coisas tipo “jantar fora, meu bem, só depois da Ilka Tibiriça”? E não apenas Cássia Kiss, redimida de anos de canastrice e antipatia por essa solteirona pungente: há muito mais. Suzana Vieira, pérfida e cafona; Joana Fomm, ainda mais pérfida, mas nem tão cafona assim. A perua provinciana e a perua viajada em choque: não esqueço a cena (cruel) em que Salustiana dispensou a visita de Rubra Rosa. Isso sem falar na rainha do escracho: Maria Gladys . Já quem tem menos de 40 anos, merece reparos: Camila Pitanga precisa lições de Arte Dramática; Deborah Evelyn, de uma boa dose de Efortil; a najinha Anna de Aguiar (Isoldinha), menos bocas; a anoréxica Erika Rosa, de refeições mais substanciais, pobrezinha.
Sobre todas, merecendo uma ode, paira uma deusa discreta chamada Arlete Salles, a costureira Margarida. Brava Arlete, que décadas atrás derrubou preconceitos casando com Tony Tornado, e nunca foi superstar. Contida, sóbria, modesta, elegante, ela não é daquele tipo de atriz como Emma Thompson, Meryl Streep ou Beatriz Segall, entre as tropicais, cujo subtexto sempre dá a impressão de um arrogante “Eu Sou Uma Grande Atriz”. Arlete é suavemente contagiante. Chorei junto com ela aquele rio de lágrimas no chão do quarto; me arrepio com sua fidelidade à Frida, a filha songamonga; adoro suas mãos castigadas e seus olhos de cão. Humaníssimos, solidários, leais.
Pois sinto falta, agora, daquela pausa no final do stress nosso de cada dia quando, num processo tribal e talvez alienante (mas que importa?) , todo o Brasil esquece URVs e baixarias do gênero para mergulhar juntos na única coisa capaz de nos distrair um pouco da insegurança: o sonho. Revejo Margarida Weber, a costureira desprezada, como uma mãe arquetípica, a nos garantir que tudo, tudo vai dar pé. Vocês vão ver só, meus filhos, nós vamos dobrar essa gentalha.

                          OESP – Caderno 2 – Domingo, 20 de março de 1994


sexta-feira, 1 de julho de 2011

Conhecendo o Paraíso – Parte 2


os versos na camiseta são de Bruna Lombardi


ATITUDES
Até agora, não sofri nenhuma rejeição. Mas há editores ligando e perguntando: ‘você não quer editar qualquer coisa’? Não! Eu não escrevo qualquer coisa! Isto é Brasil-Barbie, é querer ganhar dinheiro em cima. Ao mesmo tempo acho que temos que falar. Olha o que fizeram com a Sandra Bréa: ela chamou a imprensa, deu coletiva. Achei o máximo, a estrela querendo o brilho, mesmo o brilho pelo avesso. Falou que tinha sido em acidente de carro. A mídia toda foi investigar, não tinha havido a transfusão e a moral da história era a seguinte: ela era uma piranha, ela teve o que merecia, bem feito. Isso é horrível, nojento. Nós não queremos piedade. Nós queremos que tenha AZT na Secretaria da Saúde e não tem. Eu já fui lá três vezes e não tem. Como conheço a Scarlet Moon e a Lucinha Araújo, no Rio, liguei pra lá e elas me mandaram. Mas e se eu não tenho estes contatos, se não conheço ninguém como a maioria? As pessoas morrem. Solidariedade, amor e tal é muito bonito, mas a gente quer remédio, que as coisas funcionem.

HIPOCRISIAS
Eu já fui tão marginalizado. Mas, de repente, virei uma celebridade só porque sou soropositivo. Tem uma avidez da mídia em relação a isso, um subtexto que diz: “ah, vamos dar força pra essa bicha antes que ela morra”. Às vezes me sinto como um busto pré-póstumo. Claro que tem um lado carinhoso, de respeito, mas tem um lado de preconceito oportunista e sacana. Numa emissora de TV, há quatro anos, tive um entrevero no ar com a Raquel de Queiroz, aquela latifundiária improdutiva e extremamente reacionária – num programa semanal em que eu era sempre um dos convidados (nota: no vídeo abaixo, a partir de 02:55). Depois disso, nunca mais me chamaram para nada, a não ser há algumas semanas. E era o mesmo entrevistador, a quem eu lembrei o fato e que, durante uma hora, não me olhou nos olhos. Mas uma das coisas boas do vírus é que fica assim... um grande caguei. Não tenho nada a perder, a única coisa que posso perder é a vida. Então, quero mais é dizer o que penso, o que realmente sinto, coisas que são verdadeiras pra mim e que podem ser úteis aos outros. Porque eu acho que sou uma pessoa legal, como costuma dizer a Gal Costa. Eu vivi uma porção de coisas, posso dizer coisas boas e más também. Como falava Mae West, ‘quando sou boa, sou ótima, mas quando sou má, sou melhor ainda’.

OTIMISMO
Somos todos Laikas, um país de Laikas, aquela cachorrinha que os russos mandaram pro espaço nos anos 50 e não conseguiram trazer de volta. Eu sempre imagino que ela caiu num buraco negro e foi dar num planeta cheio de Laikas. A condição humana é Laika, a gente urrando pro infinito. Hoje, estou muito otimista. Sempre tive muita preguiça, tédio de viver. A gente não se dá conta de que a vida é um dom, que a saúde é uma benção. As  pessoas estão muito distraídas disso. Acordar de manhã e lavar o rosto é divino. Então, te dá um estado que eu chamo de budista espontâneo, um estado de adoração e agradecimento sem messianismo. Uma pessoa que sabia disso espontaneamente era o Tom Jobim, que era um Zen natural. Alguns, como eu, têm que ficar com a cabeça na guilhotina até o momento em que alguém revoga a ordem e diz: ‘pode deixar por mais um tempo’.
                               Rev. Sui Generis. Nº 1. Janeiro 1995, por Maristela Barrios