domingo, 13 de novembro de 2011

Uma sutil transgressão no horário nobre

Silvio de Abreu soube incorporar minorias à trama, sem folclore ou estardalhaço



O mais interessante em A Próxima Vítima é inaparente – uma suave transgressão. Sem a abertura de Pantanal ou Renascer nem as antigas ousadias de Gilberto Braga (oh, um casal de lésbicas! Oh, dona Chica Newman e o chofer!), A Próxima Vítima foi sutil desde a primeira cena, o sensacional plano sequência no atropelamento de Reginaldo Farias. Aparentemente por trás do verniz policial, continuava o esquemão: núcleo dos ricos, núcleo dos pobres. Ricos do mal, pobres do bem. Planos de sofá, casais desencontrados etc.

André Gonçalves e Lui Mendes
Só aos poucos o miniuniverso foi revelando o inesperado. Uma dupla de rapazes gays que não “dão pinta”, normalíssimos. A família de negros chiques, na qual branca é a empregada. Uma perua maravilhosa (Mila Moreira) namorando um negro (Norton Nascimento). O detetive fascinado pela possibilidade da mulher que ama ser assassina. A prostituta sem culpas da ótima Vera Holtz. A coroa bundona (Yoná Magalhães) é amada por um garotão, enquanto a irmã esperta (Rosamaria Murtinho) transa na boa um michê.

Pela primeira vez na velha e longa história da soap opera made in Brazil, várias minorias foram incorporadas à trama naturalmente, sem folclore nem estardalhaço muitas vezes preconceituosos. Os marginais aqui fazem parte do todo. De alguma forma, todos são marginais. Sexuais, raciais, econômicos ou afetivos. Marginais são também o normal Juca, em sua atividade de feirante. A fria e solitária Filomena ou o chofer de caminhão chegado às musas.

Suzana Vieira e Tony Ramos
A competência vai do texto dinâmico do trio Silvio de Abreu, Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira a todos os atores. Sem abdicar dos clichês e “barrigas” de uma história que deve render pelo menos seis meses, continuam os ricos do mal, os pobres do bem etc. Só que por trás do banal, há também outra coisa – ousada, mas doce – que reflete a profunda (e positiva) mudança na moral do País nos últimos anos. Um Brasil e seu espelho – a novela das oito – que já não vê homossexuais como criaturas (bye, bye tempos de Clodovil), já não se espanta com o amor de uma branca e um negro. Onde toda profissão é digna e as classes sociais se misturam com naturalidade. Um país bom, saudavelmente variado. Humaníssimo, como deveria ser. Com tais qualidades, e a discrição que é talvez seu maior charme, A Próxima Vítima talvez não inaugure um novo tempo na telenovela (Como Dancin’ Days, a introdução ao contemporâneo). Mas sem dúvida ajuda a passar a limpo um País ferido por anos de ditadura militar e malfeitores tipo Sarney e Fernando Collor. Este Brasil telenovelesco projeta a herança de decência, mesmo um tanto jeca, deixada por Itamar Franco, e encara com otimismo os tempos FH. Pouco importa que o próprio FH esteja se lixando para isso. A Próxima Vítima não diz que o presidente mudou e sim que o povo mudou. O que, convenhamos, é infinitamente mais estimulante.

Ficcionalmente, a trama policial lembra tempos de O Rebu, de Braulio Pedroso, o mais inovador de todos os teledramaturgos. Não tão sofisticada – o que mais uma vez expressa o equilíbrio procurado (e conseguido) entre o ousado e o popular. Apesar de bem urdido – espera-se que, ao final, os autores não se emaranhem nos próprios fios – e quem-matou-quem importa menos que a vasta paisagem humana. Não há vilões, heróis, mocinhas. Ou há, mas só até certo ponto: o possível galã Juca é moralista e gordo como uma barrica. O outro – Marcelo, magnífico José Wilker – frio como aço e às vezes decididamente mau caráter. As heroínas podem ser assassinas (Natália do Valle), psicopatas (Claudia Ohana) ou jecas (Suzana Vieira). A moçada pode ser burra (a Yara de Georgiana Góes, o rosto mais puro surgido na TV nos últimos tempos), gaga e grossa (Selton Mello), irritante (Deborah Secco), gay (Lui Mendes), drogada (Pedro Vasconcelos), ambiciosa (Camila Pitanga), obsessiva (Viviane Pasmanter) e por aí vai. Conclusão: nada do que é humano deve espantar.

Aracy Balabanian, Yoná Magalhães, Rosamaria Murtinho
Para estruturar tudo isso, uma equipe de atores competentíssimos. Bom acompanhar atores crescendo até “acharem” seus personagens. Suzana Vieira, de harpia à mãe humaníssima, o Zé Bolacha de Lima Duarte, do fake subliterário a climas carregados de olhares malignos. Gostoso ver contracenando duas soberbas mulheres em plenitude – Natália do Valle e Mila Moreira. Delicioso assistir à dobradinha de humilhados e ofendidos Nicette Bruno e Flavio Migliaccio e a do par perfeito de Guarnieri e Aracy Balabanian, a verdadeira rainha da telenovela brasileira. Ou a oportunidade com que foram introduzidos novos personagens – Otávio policial (Paulo Betti), a pistoleira (Patricia Travassos), o michê bonitão (Alexandre Borges) e principalmente a estonteante Romana de Rosamaria Murtinho.

Detalhes saborosos: a fitinha vermelha da luta conta a Aids de Romana, aquele livro com reproduções de Chagall atrás do sofá de Helena, uma almodovariana planta de papelão na casa de Ana, os paulistaníssimos nomes inventados de ruas da Móoca (Miriam Batucada, Adoniran Barbosa), as referências constantes à peças, filmes e figuras da cultura brasileira contemporânea. Tanta qualidade não é pouco para um gênero cheio de limitações, dogmas, vícios, tradições.

Não sei se A Próxima Vítima ficará na história. Mais valem a humanidade e a sociedade que reflete e, além da naturalidade ao lidar com temas até bem pouco considerados “escabrosos” , a sua maneira decentíssima de colaborar para aquilo que todos, singela e finalmente, queremos um Brasil melhor.

                                                           OESP – Telejornal, 8 de outubro de 1995



terça-feira, 1 de novembro de 2011

Girassóis

Foto de Adriana Franciosi

Tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples. fáceis, até um pouco bruta.

Pois não são não. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia, pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava e nada.

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O  talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto. 

Girassol dura pouco, uns três dias. 


O blog é para escritos do Caio F. que não saíram em livros. Mas um amigo (Gracias, Ivan!) mandou essa foto tão linda. E ela fica ainda mais linda com esses trechos da crônica A Morte dos girassóis, publicada no Caderno 2 no domingo 4 de fevereiro de 1996. Ao pé da página um aviso: "Por motivo de férias, republicamos crônica que originalmente foi editada no jornal Zero Hora". Caio Fernando Abreu morreu antes que fevereiro acabasse, no dia 25.
A Morte dos Girassóis está no livro Pequenas Epifanias. E também originou o livro Girassóis (Global Editora), com lindas ilustrações.