segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Encanto Felino


E continua o especial Caio F. escreve sobre escritores que ele adorava. Depois de Gabriel, Gárcía Márquez, Patricia Highsmith, e Virginia Woolf), nos posts anteriores, agora é Julio Cortázar e os 10 contos de Orientação dos Gatos. O texto do Caio chama-se Encanto Felino e está abaixo.Boa leitura.


Encanto Felino

Aos 67 anos, é no estreito limiar entre a beleza e a violência, o real e o fantástico, que se movimenta agilmente o autor destas dez histórias. Ao contrário de seu Alguém Que Anda Por Aí, em que bons textos de ficção se misturavam descuidadamente a outros mais próximos da mera crônica ou reportagem, aqui cada peça tem seu sentido próprio e parece exaustivamente trabalhada até quase a perfeição. É o caso, por exemplo, de graffiti. Num país sem nome, num tempo sem data, dois personagens que não se conhecem conseguem se comunicar no meio da mais violenta repressão policial por meio de desenhos feitos com giz pelos muros da cidade. Em cinco páginas, Cortázar resume as dificuldades de um encontro pela arte, pela beleza ou pela poesia num tempo de terror ditatorial.


Mas há mais: histórias sombrias, quase tétricas, como Texto em uma Caderneta, sobre um labiríntico metrô em que desaparecem misteriosamente pessoas “tão pálidas e tão tristes” nas profundezas das estações de Buenos Aires – uma sofisticada metáfora da situação política argentina. Ou História com Aranhas, sobre uma macabra dupla em férias no Caribe, que só se revela na última frase. Não falta também aquele saboroso Cortázar que questiona seus próprios processos criativos, como no dramático Tango de Volta.


Encantatório na maneira como consegue jogar o leitor dentro de uma atmosfera em que a transgressão do real se torna perfeitamente aceitável, Cortázar frustra novamente as carpideiras que o declaravam acabado. Lúdico e lírico, é outra vez diabolicamente envolvente. Às vezes evocativo, como em Queremos Tanto a Glenda, ou o melancólico contemplador da natureza humana, esquiva como a dos gatos que atravessam todo o livro, no conto-título.

Com histórias de sabor amargo escondido sob o chantilly do delírio, Julio Cortázar parece querer nos transmitir que na arte, apesar dos regimes repressores, encontra-se quem sabe a possibilidade mais plena da realização humana. E seus contos podem ser lidos com o mesmo prazer do personagem de Histórias que Me Conta, quando confessa: “Me conta histórias quando durmo sozinho, quando a cama parece maior do que é e mais fria....”
                                 
                                            Veja, 23 de Dezembro de 1981

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A sétima voz



Bolero à Grega (sobre García Márquez) e Entregue às Baratas (sobre Patricia Highsmith), os posts anteriores, iniciaram esta seleção de resenhas e críticas de Caio F. com escritores que ele adorava. Agora é Virginia Woolf e As Ondas. A Sétima Voz, o texto de Caio, está abaixo. Boa leitura.


A Sétima Voz

Em nove nítidos e distintos movimentos, três homens (Bernard, Louis e Nevville) e três mulheres (Susan, Rhoda e Jinny) monologam sobre suas vidas, da infância à velhice. Em contraponto, o Sol tece seu percurso diário sobre o mar. Há uma sétima voz, ausente, Percival, que jamais se manifesta, aparecendo apenas em referências dos outros personagens. Por volta do meio-dia, no quinto movimento, o Sol e as vidas de cada um começam a declinar. Se até esse momento cintilava o brilho das descobertas a serem feitas, das coisas a serem vividas, à medida que a noite se aproxima, aproxima-se também a solidão inevitável da velhice.

Diz Jinny: “Esta é a pausa de um momento: o momento sombrio. Os violinistas erguem seus arcos”. E, quando, os arcos tocam as cordas, inexorável como o movimento do dia, a vida desaba. É Bernard quem reconhece: “Durante todo o dia de trabalho, em intervalos, minha mente ia a um lugar vazio, dizendo: ‘O que se perdeu? O que terminou?’ E murmurei: ‘Acabou, acabou’ “. Como temas de uma peça barroca, enovelam-se os altos e baixos de esperanças e frustrações, cada vez mais próximos da dura consciência de que um ser humano pouco ou nada pode fazer pela solidão do outro.

Em 1930, Virginia anotava em seu diário, referindo-se a um romance provisoriamente intitulado Os Efêmeros: “Acho que este é o mais complexo e o mais difícil de meus livros. Como terminá-lo, a não ser por uma enorme discussão na qual cada vida terá sua voz, uma espécie de mosaico, não sei”. Um ano depois, saía a primeira edição de As Ondas, que chega ao Brasil quarenta anos depois do suicídio da autora, em excelente tradução de Lya Luft.

Apesar da insegurança inicial, Virginia Woolf parecia compreender perfeitamente a grande obra que estava compondo. Assim, rompendo radicalmente com as normas ficcionais da época, ela solidificou a originalidade narrativa numa estrutura quase matemática. Talvez por isso a soberba técnica de As Ondas aproxima-se muito mais da música erudita, como observou sua tradutora francesa, Marguerite Yourcenar, que da literatura.

Ao final do dia, para os seis personagens, resta ainda uma última batalha a ser travada, contra a morte – batalha que a própria Virginia abreviou jogando-se no rio Ouse. Sua sensibilidade não passou impune mas, neste romance perfeito como uma composição de Bach, fica registrada a sensação de que, talvez, “por um momento, nossa vida se ajusta à majestosa marcha do dia através do céu”.
                            
                                     Veja, 21 de janeiro de 1981


segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Entregue às baratas

Bolero à Grega, o post anterior sobre Garcia Márquez e seu Crônica de Uma Morte Anunciada, deu partida a uma seleção de resenhas e críticas de Caio F. com escritores que ele adorava. Agora é Patricia Highsmith, "a musa heavy dos policiais", como ele escreve. Entregue às Baratas está abaixo. Boa Leitura.


                                                        Patricia Highsmith tira
                                                        férias do romance policial
                                                        mas leva a ferocidade
                                                        na bagagem

Se, da autora de O Amigo Americano, você só espera ler mais uma daquelas sombrias histórias de crime, mistério e muita, muita tensão psicológica – ledo engano. Ledo sim. Jamais frustrante. Ao contrário: nos 10 contos que compôem estas Catástrofes (nem tanto) Naturais – tradução apenas aproximada do original Tales of natural and unnatural catastrophes – Patricia Highsmith, a musa heavy dos policiais, deixa bem claro que sua literatura é perfeitamente capaz de superar rótulos redutores para invadir terrenos antes palmilhados pelos mais chegados numa science-fiction, num romance-reportagem ou naquilo que, há duas décadas, foi graciosamente batizado como “realismo fantástico”. Em se tratando de Highsmith, porém, nada de graciosidades, frieza documental ou gentis ETs. Ferocidade é sempre com ela. E disso – felizmente para as cabeças pensantes – Highsmith nunca abriu mão.

E aqui ela está possessa. Seus criminosos, desta vez, têm nomes e podem ser identificados, às vezes na primeira linha de cada conto. São quase sempre os dirigentes do mundo, seja este primeiro ou terceiro: o presidente Buck Jones (Reagan?) e sua esposa alcoólatra, Millie, que por puro pileque desencadeia uma guerra nuclear planetária (em O presidente Buck Jones incita ao patriotismo), ou Bomo (Bokassa?), ditador da “vasta e fértil terra de Nabuti, na África Oriental”, que vê seu palácio transformar-se numa espécie de túmulo, exatamente durante a visita de uma comissão da ONU. Colhidas na exarcebação das notícias de jornal, as catástrofes de Highsmith não se limitam a ser assustadores ou subversivas. Podem também ser muito engraçadas, como a história do Papa Sisto VI (João Paulo II?) que, graças a uma violenta topada no dedão do pé, encampa subitamente a Teologia da Libertação e começa uma revolução social no mundo inteiro. Para rebater risos fáceis, mergulha na pungência de Moby Dick, a Baleia Míssil, reescritura cruel de Melville, um protesto ecológico tão inquietante quanto uma foto do desmatamento amazônico.

Difícil destacar um ou outro texto num livro que, além das qualidades literárias e da enfurecida crítica aos loucos poderes, possui ainda uma unidade rara para uma coletânea de histórias curtas. Mas talvez seu núcleo temático concentre-se principalmente em Problemas no Torres de Jade, crônica de um finíssimo prédio de apartamento de 88 andares. Invadido por baratas cada vez mais gigantescas, o Torres de Jade transforma-se aos poucos num tótem real e metafórico de apodrecimento social: por baixo dos mármores, das abóbadas verde-jade e de todas as delícias do consumo, fervilha um indestrutível ninho de baratas. Impiedosa, Highsmith dispara sua metralhadora cheia de fúria contra as campanhas imobiliárias, as agências publicitárias, o jornalismo mundano e, mais além (ou aquém?) das máquinas fabricantes de modismos, contra os seres patéticos que a maioria de nós se tornou, disposta a tudo apenas para manter as aparências do chic.

O mesmo acontece no cínico Operação Bálsamo, que trata de um hipotetico grupo – o CNN (Comissão de Controle Nuclear) – encarregado de “disfarçar” o lixo nuclear da usina de Three Mile Island. Claro, sempre é possível que alguém se aborreça com Alugam-se Úteros, ache gratuito o humor de Cemitério Misterioso ou mal consiga localizar na história de Naomi, a velha com mais de 200 anos (de Sem Fim à Vista) a mesma força contestatória que, como um rastilho de pólvora, percorre os outros textos. Mas os insignificantes tropeços destas Catástrofes não permitem ironias fáceis com o título.

Naturalmente – e com muita coerência – a longa viagem pelos horrores contemporâneos feita por Patricia Highsmith termina numa gigantesca contaminação nuclear. Fim previsível para ficções que brincam, o tempo todo, com o apocalíptico. No final do livro, com a força gravitacional abalada pelas explosões, um enlouquecido planeta Terra gira pelo universo à mercê de ventos radioativos, “a última das pragas”. Os 10 contos de Patricia Highsmith são pura dinamite. Loucuras perfeitamente lógicas não só na mente privilegiada desta autora de 18 romances fascinantes, mas também na de qualquer pessoa razoavelmente informada sobre o que acontece atualmente no planeta.

                                  Jornal do Brasil – Idéias, 13 de maio de 1989

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Bolero à grega

Quem abre é Gabriel Gárcía Márquez e nas próximas semanas, críticas de Caio Fernando Abreu de escritores que ele adorava: Julio Cortázar, Virginia Woolf, Patricia Highsmith, Lya Luft, Zelda e Scott Fitzgerald. Na segunda, Patricia Highsmith. E abaixo, Crônica de Uma Morte Anunciada por Caio F.



Bolero à grega

Até hoje, ninguém sabe ao certo como estava o tempo no dia em que mataram Santiago Nassar. Para muitos, “era uma manhã radiante, com uma brisa de mar que chegava através dos bananais”. Mas a maioria lembra-se de “um tempo fúnebre, de céu sombrio e baixo e um denso cheiro de águas paradas”. Alguns acrescentam ainda que no exato instante do crime, talvez naquele momento mesmo em que a primeira punhalada o atingiu na palma da mão direita, começou a cair uma chuvinha miúda. Estranhamente igual à que o próprio Santiago vira no sonho da noite anterior.

Assim, numa manhã de fevereiro, entre vagos presságios e obscuros sonhos premonitórios – vestido de “linho branco lavado só com água, porque sua pele era tão delicada que não suportava o roçar do engomado” –, Santiago Nassar, aos 21 anos de idade, começa a caminhada em direção à própria morte. Assim, também o colombiano Gabriel Gárcia Márquez desiste da greve literária iniciada em 1973, quando o general Augusto Pinochet assumiu a “presidência” do Chile, e que deveria durar até sua queda do poder. Pinochet, como se vê, foi bem mais resistente que supunha Márquez – e o autor de Cem Anos de Solidão acabou por mudar de ideia. “Foram os próprios escritores chilenos que pediram que voltasse atrás em minha decisão”, contornou ele ao anunciar a publicação desta Crônica de Uma Morte Anunciada, no início deste ano. “De qualquer forma, estou certo de que Pinochet não durará muito no poder”.

INTELIGÊNCIA ACESA – Dure ou não Pinochet, quem ganha com a quebra do juramento são os leitores deste apaixonado autor de letras de bolero cm música digna de As Mil e Uma Noites e mise en scéne de tragédia grega. Lido um simples parágrafo desta novela, que só agora chega ao Brasil, é impossível parar. Toda a população da pequena cidade colombiana onde se passa a ação de Crônica de Uma Morte Anunciada sabe que Santiago Nassar vai morrer. Menos ele. Todos sabem que os gêmeos Pablo e Pedro Vicário esperam com suas facas afiadas para vingar a hora perdida da irmã Angela, devolvida na noite de núpcias por não ser mais virgem. O leitor também sabe. O que não o impedirá de devorar em poucas horas cada uma das páginas que o conduzem ao momento em que Santiago, as vísceras entre os dedos, desaba de bruços na cozinha.

Costurando pacientemente retalhos de folhetim com contos de fada e reportagem, dramas sicilianos de lençóis manchados de sangue expostos aos vizinhos na manhã seguinte a requintes sutis de novelista policial, Márquez sabe sempre que o mais importante é manter o leitor com a curiosidade acesa e a inteligência desperta, Por isso, a medida que superpõe múltiplas vozes narrando o crime, à maneira de um repórter cercando o fato, permite que a emoção de quem o lê prencha as lacunas propositadamente deixadas. Jamais se saberá com certeza quem violou Angela Vicario – como jamais se saberá a verdade sobre a suposta traição de Capitu, de Machado de Assis ou sobre as intimidades amorosas do Hans Castorp e da Clawdia Chauchat, de Thomas Mann. A justiça ou não do assassinato daquele pálido Santiago, com suas “pálpebras árabes e cabelos crespos”, permanecerá um enigma.

QUATRO MULHERES – Mas, quem sabe, é exatamente essa riqueza ambígua do que não é totalmente expresso – aliada a uma notável capacidade de estimular fantasias com gosto de infância e a um sereno domínio técnico da narrativa – que aproxima García Márquez das linhagens mais nobres de ficcionistas. Não deve ser gratuitamente que ele declara ter quatro mulheres importantes na vida: a avó, a mãe, a esposa e ninguém menos que Virginia Woolf...
Misturando memória e fantasia ao recriar esta história real, contada por sua mãe (arrancando-lhe a promessa de que só a escreveria quando estivessem mortos todos os protagonistas), Márquez revela um emocionado amor pela criatura humana. É assim que semeia histórias de cega paixão – como são as 2.000 cartas escritas durante dezessete anos pela repudiada Angela ao noivo – ou velados ódios, como o da cozinheira Victoria Guzmán, que não avisa Santiago de sua morte próxima. E em cada uma dessas páginas Gárcia Márquez reinventa a vida no que ela tem de mais ensolarado e mais trevoso. Morto Santiago, o cheiro de seu sangue a tudo impregna. Até a pele de quem lê, por que não?

                                                  Veja, 4 de novembro, 1981

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Brizola por Caio F.


Em novembro de 1989, onze escritores foram convidados pelo Caderno Idéias do Jornal do Brasil para “traçar, com absoluta liberdade de estilo, o perfil dos onze principais candidatos à Presidência da República. E Caio Fernando de Abreu escreveu o de Leonel Brizola, Alguém escreve ao caudilho, abaixo.

                               Alguém escreve ao caudilho

                                “churrasco, bom chimarrão,
                                 fandango, trago e mulher:
                                é disso que o velho gosta,
                                é isso que o velho quer.”
                                   (Berenice Azambuja)



Bagaceira, exclamou sem exclamação, puro costume. Se fumasse, esmagaria a ponta do cigarro no bico da bota, que já tinha calçado uma. O pé esquerdo restava nu, um tanto patético com seus calos cada vez mais doloridos. Cinco minutos, pedira, pelo amor de Deus e não paravam de bater à porta, será que um vivente não tem um minuto de sossego nesta côsa, quase gritou. Aí lembrou da água para o mate, abriu uma fresta e pegou o termo sem ver a cara da mão que estendia a garrafa. Doutor, ouviu, o povo tá esperando. Pela vidraça abaixada, pelas cortinas fechadas vinham gritos e foguetes, como quando se tem dor de ouvido e através de algodões o som chega abafado, remoto. Encheu a cuia, cuspiu fora a água pelando de quente. O primeiro gole, lembra sempre, só para esquentar a bomba. Pulando no único pé calçado, afastou a cortina. Mas não viu a praça cheia, nem palanque nem povo.
Um campo plano espelhado sem fim, via, tão sem fim que se olhasse em volta teria o horizonte inteiro, como em alto mar, só que verde de capim, não de água, aqui e ali coberto com aquela plantinha amarela, flor de fedorenta, que brotava antes dos Finados, maria-mole diziam, ele ria, maria-mole era nome de doce noutros lugares, ou de china dessas bem rampeiras, girava o pescoço e via os trezentos e sessenta graus do pampa interrompidos vez por outra por uma capão de eucaliptos ou a superfície de vidro de algum açude, e de repente via também olhando mais atrás no tempo, não no espaço, sem querer mas via sempre e sempre com susto e revolta, embora nunca tivesse visto a cabeça degolada do pai, outra vez perguntou, como perguntava sempre: mas afinal o fio do facão cortou em cima ou em baixo do lenço maragato?

Quem sabe no meio, pensou pela primeira vez, que barbaridade. Largou a cortina, tentou enfiar o pé descalço na bota. O calo latejou tão forte que a mão tremeu e a cuia derramou um pouco da erva na bombacha, favo-de-mel do lado, bombacha de festa. Foi quando catava os toquinhos de madeira no linho do bolso que encontrou o postal. Meio amassado, tantos comícios, ruas sujas do Village, batiam outra vez na porta, tá na hora, doutor, ainda assim tornou a ler, já vou, criatura:

“Caudilho velho, aqui tá o maior barato. Thanks pela grana, pouca mas valeu, Acho uma caretice tua continuar nessa história, eu ainda tô naquelas de podres poderes, you know. Mas dou força e se tu chegar lá até voto e faço outro disco. Pensei em regravar Teixeirinha, com sintetizador fica bárbaro. Kisses, Little N.”

Guria despelotada, resmungou, nunca sabia se irritação ou uma espécie de carinho. Tornou a botar o cartão no bolso, nem mostrei pra pobre da Neusa. Deu outro chupão na bomba, bosta de erva lavada, nem a erva mais presta neste país, bagaceirada. Lá fora, foguetes mais altos. Espiou outra vez pela janela, e outra vez o pampa imenso, pudesse esporeava o cavalo e saía agora no tranquito em direção a São Borja, Itaqui, Uruguaiana, ver o sol deitar no Uruguai, no lado dos correntinos. Mas batiam na porta, num encansinamento ele puxou o zíper da bombacha, parece côsa de fresco, e só se olhou no espelho para dar um nó no lenço vermelho. Única, última vaidade: arrepiou os pelos das sobrancelhas, que até bigode e cabelos, como tanta coisa, tanta gente, tinham ido embora. Abriu a porta, saiu para o corredor. E já ia afundar naquele alvoroço de abraços quando um chamango tocou no seu ombro para avisar, voz baixa:

- Me desculpe, seu Leonel, mas o senhor tá só com um pé de bota.

                       Jornal do Brasil, Caderno Ideias, 12 de novembro de 1989

E aqui, a música cujos versos iniciais Caio F. usa de epígrafe