quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os sonhos de todos nós



Fante em Los Angeles
Se me perguntassem qual foi o livro que mais gostei de ler em 1984 (e nos últimos anos), responderia sem vacilar: Pergunte ao Pó, de John Fante. Ele trouxe de volta um tipo de emoção experimentado no final dos anos 60, com a descoberta de J.D. Sallinger, do Holden Caufield de O Apanhador no Campo de Centeio aos membros da família Glass, à qual pertencia Seymour, o suicida poeta zen. Em comum entre os dois, uma infinita piedade pela condição humana e a inocência de personagens perdidas num mundo de relações incompreensíveis.

Sonhos de Bunker Hill traz de volta o alter-ego de Fante, o escritor Arturo Bandini, visto alguns anos depois de Pergunte ao Pó. O virginal Bandini do livro anterior agora batalha no mundo dos roteiros cinematográficos de Los Angeles – cidade que ele amou e cantou como ninguém -, fascinado por traseiros femininos, em luta contra a falta de grana e, quase sempre, de inspiração para escrever.


John Fante e Joyce
Publicado originalmente em 1982, um ano antes da morte de Fante, aos 74 anos, o livro tem uma peculiaridade: não foi escrito, mas ditado a Joyce, mulher do autor. Cego, com as duas pernas amputadas devido a problemas com diabetes, essa foi a única maneira que Fante encontrou de não parar de escrever. Não podia parar. E, escrevendo ou ditando, a emoção era sempre a mesma: tripas e coração, como diz seu admirador Bukowski, misturados no mesmo esforço de fundir humor e dor, ternura e ridículo, grandeza e miséria. Bandini é palhaço, herói, gigolô, artista, vagabundo, romântico: tudo ao mesmo tempo. Daí talvez sua irresistível simpatia, capaz de fazer com que qualquer um de nós se identifique com suas confusões.

Em volta de Bandini, uma galeria de personagens – muitas nitidamente calcadas em modelos reais daquela fauna absurda dos anos de ouro de Hollywood, nas décadas de 30 e 40 – tão malucas quanto ele. Podem ser a roteirista Velda van der Zee, autora (em co-autoria com Bandini) do hilariante faroeste Sun City, ou o também roteirista Frank Edgington, vagamente homossexual, com quem Bandini divide uma história ambígua, regada a vinho e maconha (ele agora está menos moralista do que quando conheceu Camila Lopez, a inesquecível princesa maia de sapatos em farrapos, de Pergunte ao Pó), o lutador Duque de Sardenha, ou a amante Helen Brownell, dona do hotel onde ele mora. Em todos, a palavra de Fante não demarca nenhum limite definido entre a dignidade e o grotesco. Nessa delicada faixa de transição do cômico para o trágico, nessa corda-bamba entre o que se gostaria de ser e o que realmente se é, equilibram-se as pungentes criaturas de Fante. Que fazem rir de um riso nervoso, de olhos molhados.

Os sonhos sonhados em Bunker Hill, guardadas circunstâncias e proporções, são os mesmos sonhos de todos nós. É o sonho de um trabalho criativo e gratificante, que a realidade acaba por reduzir a duas palavras no roteiro de Sun City: Whoa! E À toda! Os sonhos de um grande amor pulverizados pelo cansaço sem sex-appeal de uma cinquentona, e a modesta contestação: “Éramos bons um para o outro, Helen Brownell e eu”. O sonho de uma volta triunfante ao lugar de origem – quando Bandini retorna a Boulder, no Colorado, e um porre antiestratégico transforma em tombo as vantagens contadas sobre Johnny Weissmuller e Esther Williams e Buster Crabbe. Em todos os tombos de Bandini, o desmentido da fantasia de que a vida, afinal, seja menos mesquinha. Viver, a própria vida vai provando aos pouquinhos, não tem nenhum happy-end em technicolor e cinemascope.

Para Fante-Bandini, a única forma de conquistar essa ilusão de sentido, grandeza ou beleza da vida talvez tenha sido escrever. Por isso, no final, com “dezessete dólares na carteira e o medo de escrever”, ele senta-se em frente à máquina e, orando a Deus e a Knut Hamsum, inicia o processo mágico e salvador de transformar em ficção cheia de poesia uma realidade que nem sempre foi tão poética assim. “Ah vida!” – ele clamava em Pergunte ao Pó – “Tua amarga doce tragédia, sua puta deslumbrante que me levaste à destruição”.


John Fante não foi exatamente “um gigante da literatura”, nem escreveu sobre grandes tragédias da alma humana: detinha-se sobre o pequeno, com muito cuidado. Com doses generosas de sentimentos raros: perdão e amor. Ele escreveu pouco: além de Pergunte ao Pó e Bunker Hill, sua obra compõem-se apenas de Wait Until Spring, Bandini (1952) e The Brotherhood of Grape (1977). Passou quase toda a vida retirada dos cintilantes circuitos da badalação, às voltas com problemas de saúde. Era um homem muito simples, todos dizem. Sabia que suas histórias não tinham muitas pretensões mais do que resgatar do pó do esquecimento figuras que, se ele não as tivesse lembrado, permaneceriam para sempre anônimas. Sabia também que quando tudo parece meio idiota quando se pensa na morte. E que as pessoas, de muitas maneiras estranhas, tortuosas, piradas, no final das contas só querem amar e ser felizes. Doloroso é que isso, que parece tão pouco, seja geralmente tão inatingível. Fante-Bandini sabia muito bem de todas essas coisas.
             


Prefácio do livro Sonhos de Bunker Hill, de John Fante, publicado pela Editora Brasiliense em 1985. Caio Fernando Abreu também foi o copidesque.






sábado, 8 de outubro de 2011

De laços, de seios, sábados e tormentas



Paris – Era uma vez um sábado de abril. Sábado é sempre sábado, igual em Paris, Porto Alegre ou Cingapura. Sempre no ar aquela expectativa – pizza, cinema ou beijo, não importa – de uma gota de mel para o domingo. Comprei o Le Monde e o Libération, sentei no café da esquina para praticar meu mórbido e pátrio esporte diário: procurar notícias do Brasil, que não desato esse laço. Nunca tem. Mas desta vez – explosão! Como diria Clarice Lispector – ah, desta vez sim, bem grande no alto da última página: BRÉSIL. Adiei a voracidade, pedi outro café, fui ao toalete fazer nada, acendi um cigarro, sorri para uma alemã e depois de uns 10 minutos, absolutamente natural, só o coração batendo secreto me denunciaria, peguei e li sem fôlego, morto de sede e saudade.

Olinda, uma das cidades mais belas que conheço, patrimônio histórico da humanidade. Periferia de Olinda, Recife, Pernambuco, Nordeste do Brasil, América do Sul. Um seio amputado no lixo. Fome, miséria. Tamanho horror que minha forma mais eficiente de reproduzi-lo é repetir sua síntese aqui assim numa única linha para que fique bem claro e medonho e irrecusável na sua hediondez que ofende a todos nós.

Canibalismo em Olinda.

Voltei ao toalete para fazer aquilo que os bebês e os bêbados fazem muito, embora tenha passado dos 40 e, hoje, só bebi café e vitamina C. Dobro o jornal com cuidado e vergonha, para que ninguém leia. Capricho na pronúncia ao pedir a conta, para que não suspeitem de onde venho e saio de fininho. Ando sem rumo por Alesia até me atrasar para a entrevista. Eva Louzon, apaixonada pelo Brasil, faz milhares de perguntas, eu falo do sol, da energia bruta da terra – axé! Axé – que-aqui-não-tem! -, de Machado e Rubem F. e Lygia Fagundes e Hilda Hilst e muita música, Gal, Bethânia e Calcanhoto, cascatas, araras, essas praias murmurantes aonde a lua vem brincar e futuro resplandecente. Um dia, um dia. Tropeço por brasilidades histéricas, fumo demais. No metrô um punk antigo demi-moicano ameaça com navalha quem não dá dinheiro. Não dou, faço o invisível, sempre funciona. Desabo no Marrais de tardezinha.

Um postal de Isabelle Adjani como Emily Brontë, uma antologia de contos gay organizada por David Leavitt. Podia visitar sem aviso Betty Milan, que mora na esquina, telefonar para qualquer um, em português, assistir Jeanne La Poucelle, Sandrine Bonnaire como meu ídolo de infância, Joana D’Arc na versão de Erico Veríssimo. Não faço nada: cinemas cheios demais, ruas cheias demais. Quero voltar para casa, ver TV até a imbecilidade, dormir sem sonhos. Alguma coisa me falta, desesperadamente.

Estou perdido. Atravesso pontes, viro esquinas medievais. O dia é cinza e frio como as cinzas dos borralhos. Quero qualquer coisa que não tenho agora, um país, uma língua, um amor, nesta cidade estrangeira quero me jogar no Sena, me embriagar alucinadamente. Então eu paro e olho a rua, a casa em frente.


A placa (Gracias, Ricardo Costi)
Quai de Bourbon, número 19. Uma placa diz que ali viveu Camille Claudel. Mais abaixo, esta frase dela – “Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) – escrita exatamente há 108 anos. Mas já vivi isso, penso, por que outra vez? Quero acender uma vela pela alma de Camille, a multidão de japoneses barra a entrada da Notre-Dame. Amanhã, amanhã sem falta em Saint-Germain de Prés. Volto pelos túneis cheios de namorados. O sábado, o mel. O Brasil me falta e dói como dizem doer a ausência de um membro amputado, o seio no lixo, o tormento e a tormenta nas esquinas de Pernety, eu repito e repito o horror que ofende a todos nós:

Canibalismo em Olinda.

E no entanto eu não desato esse laço. Tão apertado, parece forca.


                                         OESP – Caderno 2 – Domingo, 1 de maio de 1994