segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A Rosa Púrpura do Cairo


Não consigo lembrar a primeira vez que fui ao cinema. Mas, certamente, faz muitos anos. Acontece que lá em Santiago, interiorzão brabo do Rio Grande do Sul, minha mãe adorava cinema. Meu pai não era muito chegado. Naturalmente, então, eu – o primogênito – era sempre requisitado para acompanhar minha mãe nas sessões do Cine Imperial, o único da cidade. Como ela era muito amiga de Dona Zezé, a mulher do dono, sempre davam um jeitinho para que eu pudesse entrar. Mesmo quando era fita (dizia-se fita, naquele tempo) forte (e dizia-se forte quando tinha um pouco de sexo, algum beijo mais demorado – e de língua).

Daquelas sessões, então, ao lado de minha mãe, misturadas às matinês de domingo, resta uma espécie de colagem louca na minha memória. Onde Flash Gordon espia a saia arregaçada de Silvana Mangano em Arroz Amargo, e os gritos e cipós do Tarzan Johnny Weissmuler fazem fundo às lágrimas de Lana Turner em Imitação da Vida. As caras e bocas tropicais da mexicana Maria Felix convivem em paz tanto com as caras e bocas escandinavas de Ingrid Bergman quanto com o sapateado de Ginger e Fred. Numa cidadezinha onde nada acontecia, as paixões e aventuras aconteciam (porque viver sem elas quem consegue?) na telinha do cinema.

Talvez tenha sido por isso que, mais de 30 anos depois, ao assistir pela primeira vez A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen – naquela cena final, quando a imagem congela no esboço de sorriso (tão amargo e iluminado) de Cecilia/Mia Farrow -, não me contive e gritei: “Que filho da puta!” Porque, de repente, tudo o que eu tinha vivido (e acho também que a minha geração inteira) nesses anos todos de cinemania estava ali contado na vidinha de Cecilia. Que vai obsessivamente ao cinema para viver – viver o que a vida não dá, ou dá apenas em doses homeopáticas, simulacros. Qualquer pessoa viciada em cinema (como Cecilia e eu) sabe desse pequeno segredo, tão profundo quanto inconfessável: vai-se ao cinema para viver o que a vida não dá.

Se é uma fuga? Sim – e daí? Só depois de ter visto A Rosa Púrpura compreendi melhor porque nunca consegui gostar muito de Godard, por exemplo. A grande maioria dos filmes dele foram feitos para você refletir sobre eles, para você se distanciar-se e criticá-los. Mas quem vai ao cinema como Cecilia/Mia Farrow ia, não quer refletir sobre nada, não quer distanciar-se, nem critiicar coisa alguma. Quer apenas mergulhar na fantasia, de onde só voltará à tona com certa dificuldade. E algum desgosto pelo sem-gracismo da realidade dita “objetiva”.

Ao final daquela primeira vez que vi A Rosa Púrpura, me voltaram à cabeça uns versos de um poema e de uma música. Um poema de, coincidência, Outra Cecília (a Meireles): “A vida só é possível reinventada”. E uns versos de Mario Lago para um fox muito antigo, de Custódio Mesquita, gravado por Orlando Silva, Nada Além: “Eu não peço nem quero/ para o meu coração/ nada além de uma linda ilusão”. A princípio, não compreendi a relação. Agora, suponho que sim: tanto o filme quanto o poema ou a música falam dessa nossa louca necessidade de ilusão. Porque a imaginação do homem foi feita, acho, para imensamente mais do que aquilo que o cotidiano oferece.

Por tudo isso, em cada vez que revi o filme (perdi a conta), vivi junto com Cecilia a paixão por uma figura que só é possivel no sonho. E sempre compreendi perfeitamente bem quando, ao contar que está apaixonada, Cecilia acrescenta, meio encabulada, como pedindo desculpas: “Ele não é real, mas que se há de fazer? Também não se pode ter tudo”. Por não se poder ter tudo, vai-se ao cinema. Aquela salinha escura onde, por algum tempo, todos os sonhos mais loucos são possíveis. De mentirinha, é claro. Mas que se há de fazer?
                                                           (Revista SET – 1987)

4 comentários:

  1. adorei a idéia...
    e citei no meu blog:
    http://paginasdarelva.blogspot.com/
    Um abraço...

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  2. Perfeito este texto

    bom acredito que a única coisa ruim do blog é que não é atualizado todos os dias

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  3. Eu que nunca fui cinéfilo,achei este filme interessante.A abordagem do cronista também.

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  4. Foi realmente um achado esta crônica. Estou produzindo um artigo sobre intertextualidade baseando-me no livro 'Pequenas epifanias' do Caio, e no livro há uma crônica que dialoga muitíssimo com esta (que não está no livro). O acaso trabalha a nosso favor, só gratidão pela coincidência.

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