segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

FH continuará sorrindo colorido?

Das lembranças que levarei de 1995, uma certamente permanecerá: o sorriso de Fernando Henrique Cardoso. Muita coisa que ontem parecia importante ou significativa amanhã virará pó no filtro da memória. Mas o sorriso de FH, ah, esse resistirá a todas as ciladas do tempo.
Ficarão terremotos, vulcões, maremotos, incêndios, enchentes dantescas, como se o sistema imunológico da Terra estivesse entrando em pane. O planeta elegante, febril, suarento, explodindo em rumores, chiliques e calafrios naturais de todo o tipo. Um corpo doente avisando aos seus microscópicos vírus predadores (nós, baby) que OK, vocês estão vencendo boys. Façam alguma coisa já. Ou danem-se. Na mesma enfermaria, guardarei as informações alarmantes sobre o rombo na camada de ozônio, talvez o sintoma mais grave da peste que assola Gaia, assunto espantosamente tratado como parte das amenidades da mídia. Diretamente ligadas, ressoarão por muito tempo em nossos ouvidos as explosões abaladas feito soluços lá no fundo do Pacífico Sul, no genocídio ecológico cinicamente perpetrado pelo porco Jacques Chirac. Vem cá, ninguém vai dar um tiro nos cornos dessa anta? Porque o Greenpeace é mais pra Gabeira do que pra Trotsky, meu bem.
Enquanto isso, FH sorri. Policromático feito os cabelos de Esther Grossi. Que ficará, ao lado de Marta Suplicy. E o Ibsen, hein?
Triste, levarei comigo as imagens de Paris imersa no caos. E todo o sangue da Iugoslávia, os horrores do Zaire, da África Central minada pela Aids. Como não sou mazô, levarei também futilidade: Lady Di detonando a família imperial, depois partindo para a Argentina com seu quê de drag queen adolescente. Di é a Jackie O. dos anos 90.

Das grandes alegrias culturais na minha bagagem, a primeira delas é a ressurreição do cinema brasileiro com Guilherme de Almeida Prado, Walter Salles, Ugo Giorgetti, Carla Camuratti, Norma Bengell, Cacá Diegues, Suzana Amaral, Fábio Barreto, o irmão Mainardi e muitos mais – gente que faz (alô, alô Ana Carolina), além da saudade de David Neves, de quem restou a herança de As Meninas. Ninguém percebeu o grande ano que 1995 foi para a literatura nacional. Basta citar Quase Memória, de Carlos Heitor Cony, o melhor romance; Risco de Vida, de Alberto Guzik; A Última Quimera, de Ana Miranda (minimizado pela crítica); o genial Sherlock de Jô Soares; a biografia de Clarice Lispector, de Nádia Batella; Rubem Fonseca em excelente forma. Ivan Ângelo, Ignácio de Loyola, Chico Buarque, Patrícia Mello, Cristóvão Tezza, Bernardo Carvalho, o grande contista gaúcho Sergio Faraco (LPM, procurem Contos Completos urgente). Para coroar o ano, rainha absoluta, Lygia Fagundes Telles e A Noite Escura e Mais Eu, talvez sua obra-prima. E um escândalo: a retirada das livrarias da honestíssima biografia de Garrincha de Ruy Castro, como nos tempos do militarismo. Ninguém faz nada, pô?
A todas essas, FH sorri. Na China, Estados Unidos, Oropa, França e Bahia. Monocromático, em preto-e-branco, tropeçando naquela revista às tropas ao lado de Bill Clinton ou usando aquela estonteante fantasia de Apoteose da Criatura Ocidental em Coimbra. Vixe, como sorri.
Uma novela brasileira, A Próxima Vítima, do trio-maravilha Silvio de Abreu, Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira; o Brasil Legal, de Regina Casé; delícias de Comédias da Vida Privada, com seu elenco cult – isso ficará. Do pouco que vi em teatro, Três Mulheres Altas, do dilacerante Edward Albee (Maria Adelaide traduziu), direção essencial de José Possi Neto para três atrizes soberbas: Beatriz Segall, Nathalia Timberg e Marisa Orth (superada a fase bobajol), e Como Diria Montaigne, Alcione Araújo dirigido por Luiz Arhur Nunes, com uma estupenda Ivone Hoffmann. Das tardes sonoras, ressoará doce a voz de Caetano sussurrando as cantigas em espanhol de Fina Estampa; a nobreza de Péricles Cavalcanti; a seriedade comovida de Adriana Calcanhotto em A Fábrica do Poema; os tangos e boleros de Cida Moreira em Elogio, Borges by Denise Stoklos. E Mamonas Assassinas mais Skank no rádio, por que não? Ficará um filme como O Padre, também Almodóvar, mas sobretudo Theo Angelopoulos. E tanta, tanta coisa (Romário e Edmundo e Galisteu, não!) que o espaço, sorry acabou.
Pergunto-me em alas se em 1996 FH continuará sorrindo colorido. Bueno, desde que não seja amarelo, né?

                                                   OESP – 31 dezembro 1995

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