terça-feira, 12 de abril de 2011

Que depois de me ler



                                
                       Você fique feliz, compre uma
                        
metralhadora, embarque para
                        Paris, boceje. E me perdoe

Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois de ler, você sinta como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma urgência inadiável de ser feliz. Ser feliz agora, já, imediatamente. E saia correndo para dar aquele telefonema, marcar um encontro, armar um jantar, quem sabe um beijo; para comprar aquela passagem de avião, embarcar hoje mesmo para Nova York, Paris, Hononulu. Tão revigorado e seguro – depois de me ler – que nada, absolutamente nada, dará errado: ela (ou ele) atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu chamado, haverá saldo no banco para a passagem e muitos dólares. Tudo se organizará rápida e meio magicamente, como se todos os astros e todos os deuses só esperassem por um momento seu para derramar sobre sua cabeça, digamos, uma cornucópia de bem-venturanças.
Só não sei bem que palavras usaria. Por não sabê-las, penso: se eu não conseguir escrever nada tão desvairadamente feliz, talvez consiga o contrário. Um texto terrivelmente melancólico, então. Que depois de ler você chore lágrimas sentidas (chorar é bom, libera energia escura, expulsa venenos que não sairiam do corpo de outra forma). Que você rememore todas as perdas, uma por uma, e pense também na dor física, na solidão sem remédio, na morte inadiável. Para piorar tudo, pense também nisso que chamam de “os destinos do País”.
Por falar em “destinos do País”, posso tentar, quem sabe, uma coisa mais social, tão social quanto comício com a Lucélia Santos. Descrever com minúcias odiosas famílias inteiras morando embaixo das marquises do Conjunto Nacional. Falar naquele mendigo com que cruzei ontem na cidade e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da calçada, enfiando as mãos de unhas imundas em restos de arroz azedo. Seria esse um texto cheio de piedade e ira, de náusea e revolta. Que depois de ler, você ficasse tanto com os olhos marejados de lágrimas quanto com o coração fervilhante de ódio. E saísse correndo para fazer alguma coisa (tão abstrato “fazer alguma coisa”). Pegar em armas, por exemplo. Dar seu dinheiro (você tem algum? Parabéns) para A Causa do Povo.
Talvez não consiga. Não, decididamente não vou conseguir: quem sabe tento o hermetismo? Com palavras sonoras, milimetradas. Que você ao lê-las tenha vontade de escandí-las (nunca pensei que fosse capaz desta sintaxe janista...), batendo os dedos no tampo da mesa. Palavras frementes de climas, a mata amazônica ao lado de um deserto marciano e, logo a seguir, um coração em chamas junto de uma frígida reflexão cibernética. Não haveria emoção: só ritmo. Não haveria sentido: só forma.
Dá vontade de escrever carta, dizendo coisas que as pessoas não dizem mais, porque seriam coisas que só se dizem por carta, não por telefone, e ninguém escreve mais carta, só telefona, e portanto há coisas que não são mais ditas entre as pessoas. Que coisas, não sei ao certo. Que hoje não consigo quase nada, além de pensar vadio. Isso, aquilo: perdoe.
Como você consegue, como você consegue? Perguntariam. Acontece que também não consigo. É que hoje estou em suspenso. O dia deu em chuvoso, como no poema de Fernando Pessoa. Meio-dia em ponto, a mala para arrumar (viver é sempre meio Pessoa) e visitar o baú (meu terapeuta descobriu que Porto Alegre para mim é um baú), sentado em frente à janela, a cabeça fica borboleta. Lembro de coisas inesperadas como os pés de meu pai de repente sou tomado de louca compaixão pelos pés de meu pai, pés cansados de homem de quase 70 anos, pés que devem sentir muito frio em agosto. Quando começo a considerar a hipótese de dar um par de meias a ele (nunca fui muito bom em presentes) no Dia dos Pais, a cabeça dispara e lembro que preciso encontrar urgente aquela Nana Caymmi cantando Copacabana, se não morro. E prometi levar o Bukowski em quadrinhos para meu irmão Felipe (o mais bukowskiano de todos os irmãos), e preciso dar uns telefonemas, inclusive para Silvia Simas, que me abandonou, então não ligo. Pronto, acabou: não preciso ligar para ninguém, já que ninguém liga para mim. Então vem na memória Maria Julieta Drummond de Andrade, vem uma dor fininha junto. Linda, ela.
                                                  OESP – Caderno 2 - 1987

12 comentários:

  1. teu blog como sempre esta de parabéns! entro aqui sempre que vejo post novo!

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  2. Algum comentário a ser feito a respeito desse nostálgico texto de Caio? Maravilhosoooooooo...

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  3. PERFEITO, que ritmo, que coisa, que só Caio tem.
    Obrigada pelo blog maravilhoso!!!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. Maravilhosamentee perfeitoo , sou encantada por tudo que Caio escreveu , pela tranquilidade que ele relata os sentimentos, pela dor desmostrada sem o medo .. pela esperança no melhor sem ao menos ver uma pontinha de algo bom acontecendo , quando leio algo relacionado a ele logo me identifico me acalmo .. LINDO CAIO *-*

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  6. Que texto! Que Nana! reler e rever reler e rever

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  7. eu senti todos os sentimentos..
    fiquei feliz, tive vontade de chorar, tive odio, e tudo mais que Caio quisesse me passar com esse texto, unfi.. suspiro!

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  8. Incrível a forma como Caio escreve,e ele consegue transmitir exatamente aquilo que tá escrito. Você não consegue simplesmente ler, você lê e sente.

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  9. Que delícia achar esse espaço. Caio é meu xodó e gostei de saber que posso ler alguns textos dele aqui..
    : )
    Beijos

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  10. A cada novo post conheço mais o Caio e me apaixono outra vez, e outra vez...

    Bjs!

    Parabéns pelo blog!

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  11. Que texto bacana! E o Blog nem se fala, sou uma fiel admiradora de Caio! Obrigada por postar essas maravilhas escritas por ele! Beijos ;*

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  12. A editora nova fronteira lançou um livro chamado "A vida gritando nos cantos" que são os textos que ele publicava no jornal O estado de São Paulo. Os textos são maravilhosos. Estou completamente apaixonado pelo livro.

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