quinta-feira, 2 de junho de 2011

Tentativa de sitiar uma esquisitice



Ando esquisito. Não exatamente mal, mas preguiçoso, dispersivo, desatento. Ou atento a coisas tão remotas que é como se não estivesse completamente aqui. Nem lá, na coisa remota. Na caixa do supermercado, de repente revejo nítida aquela esquina do restaurante japonês em Pernety, Paris. Ao atravessar uma rua aqui do Menino Deus, onde moro, a luz do crepúsculo me transporta para a beira do fiorde de Skjeberg, no sul da Noruega. E também não são só flashes assim chiques, estrangeiros, não. Outro dia na sacada aqui de casa, voltou de repente cedo entardecer na fronteira com a Argentina: 360 graus de pampa, o sol se pondo atrás do Uruguai e a Lua Cheia subindo exatamente a 180 graus opostos. E não só lugares. Caras também, e vozes, e pessoas ausentes ou distantes de repente se introduzem no presente e no próximo. Não são apenas lembranças, que isso é comum de ter, é mais inquietante que isso: são invasões no real do imaginário e da memória.
Vou ao cinema. Prêt-à-Porter, de Robert Altman, me faz rever por dentro um filme francês sofisticadíssimo do fim dos anos 60: Qui êtes-vous, Polly Magoo? Não só o filme, mas também o cinema onde o vi, e que já não existe mais, e a própria tarde de novembro em que foi visto, depois de uma prova na faculdade. Amateur, de Hal Hartley, e seus personagens zumbis desmemoriados me levam de volta a uma noite gelada de inverno em Kentish Town, Londres, saindo de um restaurante paquistanês. Uma moça chorava desesperadamente sentada no degrau. Perguntei se precisava de ajuda, ela contou: acabara de encontrar o namorado com outra na cama. Mas não queria ajuda nem nada, só queria ficar ali chorando sozinha no degrau gelado. Fui embora.
Será grave isso que tenho, ao ver outras coisas dentro da coisa presente? Não no sentido clínico ou físico, suponho, que não exige internação nem tratamento. Mas num outro sentido um tanto abstrato, talvez seja gravíssimo. É normal ver o que não é mais no que está sendo? “Normal” não é a palavra, eu sei, “normal” estabelece um critério tão inabalável de sanidade que chega a ser facista. Tento de outro jeito, então: será que é bom, isso?



Percebem como é vago? Tenho que dizer isso porque não sei como se chama. O que agrava as coisas, pois sempre é muito mais fácil lidar com algo batizado, classificado e supostamente compreendido. Será o inverno chegando? Aqui no Sul temos inverno brabo e este final de maio deixa no ar uma espécie de calafrio de antecipação: quer-se de repente estar no Caribe ou na Bahia para não ter que atravessar as geadas e os gelos de junho e julho para chegar despedaçado em agosto e, a partir de setembro, tentar reunir os cacos outra vez. Talvez porque há quatro anos viajando sem parar, vivendo dois invernos seguidos, e nenhum verão, ou o contrário, meu organismo tenha perdido o ritmo natural?

Será o Zaire? Será a greve dos petroleiros? Será o excesso de remédios? Será porque terminei livro, e isso sempre deixa a gente assim, esvaziado, espantado? Durmo e não sonho, faz tempo. Cartas e telefonemas, que quase não atendo, deixo para responder depois. Então esqueço. Começo a ouvir Mozart, me dá vontade de ouvir Satie. Vou ao Satie, mas acho que quero mesmo é Chopin. Abro Jorge de Lima pensando em Drummond, quero João Cabral, mas no segundo verso estou pensando em T.S. Elliot. De madrugada, acordo súbito e suado, julgando ouvir as sirenes da polícia daquele inverno infernal em Brixton. Há qualquer coisa ausente? Há outra coisa que ronda querendo tornar-se presente? O terror interno foge de todas as maneiras do real e do agora para não encarar-se, será? Não sei, ando esquisito. Ando mesmo muito esquisito e, bem sei, ninguém pode ajudar.

        OESP – Caderno 2 – Domingo, 28 de maio de 1995

2 comentários:

  1. Também ando me sentindo assim...sem expectativas, faltando coragem para as coisas mais bobas e corriqueiras, mas não me diga que é depressão...costumo não gostar de rotulações...ao contrário de vc...suas memórias me ajudam...

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