terça-feira, 5 de julho de 2011

Viva o império das coroas magníficas


Paris – Há brasileirices que a gente só sente falta longe do Brasil. Foi assim, por exemplo, com a cantora Alcione, a quem nunca dei muita bola até certa tarde de 17 graus abaixo de zero, em Londres, quando Cida de Assis colocou  no toca-fitas “não-posso-mais-alimentar-essa-ilusão-tão-louca-que-sufoco”. Soluçamos no ombro um do outro, depois enfrentamos a neve para comer um junky-food indiana na esquina de Hampstead, cantarolando a Marrom. Ao molho de curry, que assim é a vida.
Desta vez, sem vergonha na cara, confesso: morro de saudades de Fera Ferida, a novela de Aguinaldo Silva. Sou um telenoveleiro apenas razoável: não suporto as das 18h, tola demais; a das 19h vejo enquanto pico cenouras, sem prestar muita atenção, embora Patricia Travassos tenha o dom de me arrancar dos confins da cozinha. A das oito, que sempre foi às oitro e meia, sempre me deixa mais atento porque vale como termômetro-do-emocional-coletivo-tupiniquim. Principalmente se for Gilberto Braga, aí não desgrudo mesmo. E trato mal quem telefona durante. Sensibilidades raras e especiais, como Cida Moreyra, nessas fases tem a sabedoria de ligar apenas durante intervalos comerciais.
Fera Ferida começou irritante. Já na primeira cena, a soma das idades dos atores beirava a idade do Brasil desde Cabral e aquele fatídico dia. Os tiques, e aquela coisa jecóide, ai, lá vem sotaque nordestino, lá vem vestido de chita... Mas Aguinaldo Silva, como bom telenovelista e romancista (Leiam Lábios Que Beijei, Siciliano), foi esquentando aos pouquinhos. Quando a gente dá por conta, pronto: está viciado. Só depois de meses Fera Ferida deixou bem claro porque é excelente: tem um time de atrizes e personagens femininas fora do comum.

Nada de modelões arfantes ou jubões crespos (o único jubão é a figura mais apagada de todas, Claudia Ohana): Fera Ferida é o império das coroas magníficas. Pois não é que, sem sentir, comecei a dizer coisas tipo “jantar fora, meu bem, só depois da Ilka Tibiriça”? E não apenas Cássia Kiss, redimida de anos de canastrice e antipatia por essa solteirona pungente: há muito mais. Suzana Vieira, pérfida e cafona; Joana Fomm, ainda mais pérfida, mas nem tão cafona assim. A perua provinciana e a perua viajada em choque: não esqueço a cena (cruel) em que Salustiana dispensou a visita de Rubra Rosa. Isso sem falar na rainha do escracho: Maria Gladys . Já quem tem menos de 40 anos, merece reparos: Camila Pitanga precisa lições de Arte Dramática; Deborah Evelyn, de uma boa dose de Efortil; a najinha Anna de Aguiar (Isoldinha), menos bocas; a anoréxica Erika Rosa, de refeições mais substanciais, pobrezinha.
Sobre todas, merecendo uma ode, paira uma deusa discreta chamada Arlete Salles, a costureira Margarida. Brava Arlete, que décadas atrás derrubou preconceitos casando com Tony Tornado, e nunca foi superstar. Contida, sóbria, modesta, elegante, ela não é daquele tipo de atriz como Emma Thompson, Meryl Streep ou Beatriz Segall, entre as tropicais, cujo subtexto sempre dá a impressão de um arrogante “Eu Sou Uma Grande Atriz”. Arlete é suavemente contagiante. Chorei junto com ela aquele rio de lágrimas no chão do quarto; me arrepio com sua fidelidade à Frida, a filha songamonga; adoro suas mãos castigadas e seus olhos de cão. Humaníssimos, solidários, leais.
Pois sinto falta, agora, daquela pausa no final do stress nosso de cada dia quando, num processo tribal e talvez alienante (mas que importa?) , todo o Brasil esquece URVs e baixarias do gênero para mergulhar juntos na única coisa capaz de nos distrair um pouco da insegurança: o sonho. Revejo Margarida Weber, a costureira desprezada, como uma mãe arquetípica, a nos garantir que tudo, tudo vai dar pé. Vocês vão ver só, meus filhos, nós vamos dobrar essa gentalha.

                          OESP – Caderno 2 – Domingo, 20 de março de 1994


3 comentários:

  1. Quando estamos longe de casa damos mesmo valor a certas coisas que pouco nos importava, mas que todos nós, como bons brasileiros, sentimos saudade.

    Eu que não tive oportunidade de ver "Fera Ferida" posso dizer que instigou-me a conhecer um pouco de Tubiacanga.

    Ah, Caio... só você para descrever tão bem sobre as "coroas magníficas"!

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  2. Que ótimo! Engraçado é imaginar o que Caio diria hoje de Camila e Deborah. Acho que a opinião sobre Camila poderia mudar, quando a mesma fez a personagem "Bebel" (Paraíso Tropical). Sobre Deborah, sua atual interpretação é de fazer qualquer um ficar hipertenso. Mas genial mesmo, é o fato dele já ter sacado na época que Susana é pérfida e ca-fo-na. Sobre a saudade, me parece a inconstância mais a nostalgia que fez Caio escrever tantas coisas belas.

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  3. Cada vez que entro aqui, parece que um pedaço de mim está entre as palavras do Caio. Hoje especialmente estou com muitas saudades do Brasil, até mencionei em uma rede social que sentia falta de algumas coisas da minha região e as palavras de hoje sobre as "coroas" foram uma prazerosa conindência. É realmente muito engraçado ler a descrição minuciosa de Caio sobre personagens e criadoras, ótimo! Parabéns pelo blog, sempre nos dando uma alegria ou uma satisfação a cada dia ;)

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