segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Um presente lindaço para São Paulo





Presente que se preza deve ter forma e conteúdo. Embrulho bonito, crac-crac de celofane ou seda, laço de fita, papel coloridésimo pra gente espatifar suavemente , de pura expectativa. E coisa bonita por dentro também, nem precisa ser cara. Pirulito mesmo serve. Pois semana passada ganhei um presente. Ou melhor, a cidade de São Paulo ganhou um – e dos lindaços –, mas quem deitou e rolou fui eu. Bem que andávamos precisados, ela e eu. Você também, garanto.

Tem um nome, esse presente. Chama-se Espaço Banco Nacional de Cinema*, fica na rua Augusta, 1.475, duas quadras da Paulista em direção ao centro, passando o Frevinho, quase chegando no Longchamp*, ali onde era o Cine Majestic. Que felizmente não virou garagem nem supermercado, igreja evangélica ou qualquer monstro tipo pró-barbárie. Esse Espaço é anti-barbárie. Eu falava de forma: tem três salas amplas, confortáveis, aparelhagem de primeira, uma sala de espera imensa com um bar de garotas simpáticas, mais um enorme (e delicioso) pôster de Oscarito e Grande Otelo. Falava de conteúdo: inaugurou com 26 filmes, considerados os melhores da Mostra do Rio de Janeiro.


Impossível ver todos. Mostra é meio empanturrante, ver um irmãos Taviani e em seguida um Zhang Yimou soa tão insensato quanto jogar-se sobre um frango xadrez logo depois de uma lasanha à bolonhesa. Mostra é meio zona também, e filme bom exige silêncio durante, depois e às vezes até mesmo antes. Sou daqueles capaz de odiar com ímpetos homicidas quem fala e come em cinema. Pipocas e Visconti, Diet Coke e Jane Campion, pode? Cinema é ritual, liturgia, solidão, projeção inocente de fantasias secretas, discretas. Mostra é indiscreta: muita gente aproveita mostra para mostrar-se. Arranjando um cantinho estratégico para ver sem ser visto, fica divertido observar o Crítico Que Saltita de Grupo em Grupo Dizendo Coisas Geniais em Voz Altíssima, ou a Modette Que Saiu Hoje na Coluna e Está Doida Para Ser Reconhecida. Coisas de Sampa, que nunca andou tão Dallas, e onde atualmente o pior tormento parece ser sentir-se invisível – ou incolunável, que aqui viraram sinônimos.


O Cheiro da Papaia Verde 
Inabalável, graças a Deus, na noite de domingo vi um dos mais belos filmes da minha vida – O Cheiro da Papaia Verde, do vietnamita naturalizado francês Tran Ahn Hung. Frágil, delicado. A câmera quase o tempo todo espreita a ação, desliza por trás de treliças, espia em vãos de portas e janelas, detendo-se às vezes em vidas mínimas – uma rã, a gota de seiva do mamoeiro, uma lagartixa, os grilos dentro da minúscula gaiola de bambu. As vidas também são minúsculas, quase mudas. Os personagens falam por gestos, pelos olhos. Estado de graça, imagem, amém.

Depois desse filme, qualquer outro europeu ou americano (principalmente, lembrar do Vietnã dói – como foi possível a pata yankee quase emagar aquela gente nobre?) parece brutal demais. Perigoso, porque também não se pode desprezar assim os lamês dourados e veludos bordôs sangrentos de Peter Greenway, nem o debochado Wittgenstein de sister Derek Jarman, com a sensacional Tilda Swinton como Lady Ottoline Morrei, e mecenas amiga de Virginia Woolf e Katharine Mansfield.

É que cinema salva. E pouca coisa salva. Muitas vezes, entre saltar imediatamente pela janela, comprar uma passagem sem volta para Marabá ou comandar uma chacina no Planalto, escolho ir ao cinema. Pois como dizia Voltaire (aliás, citado por Louis Malle): “Resolvi ser feliz porque é melhor para a saúde”. Cinema e felicidade (ou ilusão de, que importa?) são parentes próximos. Será essa uma das razões porque o Brasil anda tão infeliz? Leio que entre os 150 filmes da 17ª Mostra Internacional de São Paulo, a partir de 21 de outubro, há apenas um brasileiro. Um país que não se vê, sem auto-imagem. Pois é, deu nisso.

                      OESP – Caderno 2 – Domingo, 17 de outubro de 1993


* Com a falência do Banco Nacional, o cinema virou Espaço Unibanco. O Longchamp fechou e hoje um restaurante árabe funciona no lugar.

Um comentário:

  1. Cinema é mesmo um parente próximo da felicidade... e também da ilusão, convenhamos.
    É um grande presente para São Paulo. Um novo gerador de risos insensatos e lágrimas que já pediam há tempos para serem dissipadas!

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