Fante em Los Angeles |
Se me perguntassem qual foi o livro que mais gostei de
ler em 1984 (e nos últimos anos), responderia sem vacilar: Pergunte ao Pó, de
John Fante. Ele trouxe de volta um tipo de emoção experimentado no final dos
anos 60, com a descoberta de J.D. Sallinger, do Holden Caufield de O Apanhador
no Campo de Centeio aos membros da família Glass, à qual pertencia Seymour, o suicida
poeta zen. Em comum entre os dois, uma infinita piedade pela condição humana e
a inocência de personagens perdidas num mundo de relações incompreensíveis.
Sonhos de Bunker Hill traz de volta o alter-ego de Fante,
o escritor Arturo Bandini, visto alguns anos depois de Pergunte ao Pó. O
virginal Bandini do livro anterior agora batalha no mundo dos roteiros
cinematográficos de Los Angeles – cidade que ele amou e cantou como ninguém -,
fascinado por traseiros femininos, em luta contra a falta de grana e, quase
sempre, de inspiração para escrever.
John Fante e Joyce |
Publicado originalmente em 1982, um ano antes da morte de
Fante, aos 74 anos, o livro tem uma peculiaridade: não foi escrito, mas ditado
a Joyce, mulher do autor. Cego, com as duas pernas amputadas devido a problemas
com diabetes, essa foi a única maneira que Fante encontrou de não parar de
escrever. Não podia parar. E, escrevendo ou ditando, a emoção era sempre a mesma:
tripas e coração, como diz seu admirador Bukowski, misturados no mesmo esforço
de fundir humor e dor, ternura e ridículo, grandeza e miséria. Bandini é
palhaço, herói, gigolô, artista, vagabundo, romântico: tudo ao mesmo tempo. Daí
talvez sua irresistível simpatia, capaz de fazer com que qualquer um de nós se
identifique com suas confusões.
Em volta de Bandini, uma galeria de personagens – muitas nitidamente
calcadas em modelos reais daquela fauna absurda dos anos de ouro de Hollywood,
nas décadas de 30 e 40 – tão malucas quanto ele. Podem ser a roteirista Velda
van der Zee, autora (em co-autoria com Bandini) do hilariante faroeste Sun
City, ou o também roteirista Frank Edgington, vagamente homossexual, com quem
Bandini divide uma história ambígua, regada a vinho e maconha (ele agora está
menos moralista do que quando conheceu Camila Lopez, a inesquecível princesa
maia de sapatos em farrapos, de Pergunte ao Pó), o lutador Duque de Sardenha,
ou a amante Helen Brownell, dona do hotel onde ele mora. Em todos, a palavra de
Fante não demarca nenhum limite definido entre a dignidade e o grotesco. Nessa
delicada faixa de transição do cômico para o trágico, nessa corda-bamba entre o
que se gostaria de ser e o que realmente se é, equilibram-se as pungentes
criaturas de Fante. Que fazem rir de um riso nervoso, de olhos molhados.
Os sonhos sonhados em Bunker Hill, guardadas
circunstâncias e proporções, são os mesmos sonhos de todos nós. É o sonho de um
trabalho criativo e gratificante, que a realidade acaba por reduzir a duas
palavras no roteiro de Sun City: Whoa! E À toda! Os sonhos de um grande amor
pulverizados pelo cansaço sem sex-appeal de uma cinquentona, e a modesta
contestação: “Éramos bons um para o outro, Helen Brownell e eu”. O sonho de uma
volta triunfante ao lugar de origem – quando Bandini retorna a Boulder, no
Colorado, e um porre antiestratégico transforma em tombo as vantagens contadas
sobre Johnny Weissmuller e Esther Williams e Buster Crabbe. Em todos os tombos
de Bandini, o desmentido da fantasia de que a vida, afinal, seja menos
mesquinha. Viver, a própria vida vai provando aos pouquinhos, não tem nenhum
happy-end em technicolor e cinemascope.
Para Fante-Bandini, a única forma de conquistar essa
ilusão de sentido, grandeza ou beleza da vida talvez tenha sido escrever. Por
isso, no final, com “dezessete dólares na carteira e o medo de escrever”, ele
senta-se em frente à máquina e, orando a Deus e a Knut Hamsum, inicia o
processo mágico e salvador de transformar em ficção cheia de poesia uma
realidade que nem sempre foi tão poética assim. “Ah vida!” – ele clamava em
Pergunte ao Pó – “Tua amarga doce tragédia, sua puta deslumbrante que me
levaste à destruição”.
John Fante não foi exatamente “um gigante da literatura”,
nem escreveu sobre grandes tragédias da alma humana: detinha-se sobre o
pequeno, com muito cuidado. Com doses generosas de sentimentos raros: perdão e
amor. Ele escreveu pouco: além de Pergunte ao Pó e Bunker Hill, sua obra
compõem-se apenas de Wait Until Spring, Bandini (1952) e The Brotherhood of
Grape (1977). Passou quase toda a vida retirada dos cintilantes circuitos da
badalação, às voltas com problemas de saúde. Era um homem muito simples, todos
dizem. Sabia que suas histórias não tinham muitas pretensões mais do que
resgatar do pó do esquecimento figuras que, se ele não as tivesse lembrado,
permaneceriam para sempre anônimas. Sabia também que quando tudo parece meio
idiota quando se pensa na morte. E que as pessoas, de muitas maneiras
estranhas, tortuosas, piradas, no final das contas só querem amar e ser
felizes. Doloroso é que isso, que parece tão pouco, seja geralmente tão
inatingível. Fante-Bandini sabia muito bem de todas essas coisas.
Prefácio do livro Sonhos de Bunker Hill, de
John Fante, publicado pela Editora Brasiliense em 1985. Caio Fernando Abreu também foi o
copidesque.
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