Silvio de Abreu soube incorporar minorias à trama, sem folclore ou estardalhaço
O mais interessante em A
Próxima Vítima é inaparente – uma suave transgressão. Sem a abertura de
Pantanal ou Renascer nem as antigas ousadias de Gilberto Braga (oh, um casal de
lésbicas! Oh, dona Chica Newman e o chofer!), A Próxima Vítima foi sutil desde
a primeira cena, o sensacional plano sequência no atropelamento de Reginaldo
Farias. Aparentemente por trás do verniz policial, continuava o esquemão:
núcleo dos ricos, núcleo dos pobres. Ricos do mal, pobres do bem. Planos de
sofá, casais desencontrados etc.
André Gonçalves e Lui Mendes |
Só aos poucos o miniuniverso
foi revelando o inesperado. Uma dupla de rapazes gays que não “dão pinta”,
normalíssimos. A família de negros chiques, na qual branca é a empregada. Uma
perua maravilhosa (Mila Moreira) namorando um negro (Norton Nascimento). O detetive
fascinado pela possibilidade da mulher que ama ser assassina. A prostituta sem
culpas da ótima Vera Holtz. A coroa bundona (Yoná Magalhães) é amada por um
garotão, enquanto a irmã esperta (Rosamaria Murtinho) transa na boa um michê.
Pela primeira vez na velha e
longa história da soap opera made in Brazil, várias minorias foram incorporadas
à trama naturalmente, sem folclore nem estardalhaço muitas vezes
preconceituosos. Os marginais aqui fazem parte do todo. De alguma forma, todos
são marginais. Sexuais, raciais, econômicos ou afetivos. Marginais são também o
normal Juca, em sua atividade de feirante. A fria e solitária Filomena ou o
chofer de caminhão chegado às musas.
Suzana Vieira e Tony Ramos |
A competência vai do texto
dinâmico do trio Silvio de Abreu, Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira a
todos os atores. Sem abdicar dos clichês e “barrigas” de uma história que deve
render pelo menos seis meses, continuam os ricos do mal, os pobres do bem etc.
Só que por trás do banal, há também outra coisa – ousada, mas doce – que reflete
a profunda (e positiva) mudança na moral do País nos últimos anos. Um Brasil e
seu espelho – a novela das oito – que já não vê homossexuais como criaturas
(bye, bye tempos de Clodovil), já não se espanta com o amor de uma branca e um
negro. Onde toda profissão é digna e as classes sociais se misturam com
naturalidade. Um país bom, saudavelmente variado. Humaníssimo, como deveria
ser. Com tais qualidades, e a discrição que é talvez seu maior charme, A Próxima
Vítima talvez não inaugure um novo tempo na telenovela (Como Dancin’ Days, a
introdução ao contemporâneo). Mas sem dúvida ajuda a passar a limpo um País
ferido por anos de ditadura militar e malfeitores tipo Sarney e Fernando
Collor. Este Brasil telenovelesco projeta a herança de decência, mesmo um tanto
jeca, deixada por Itamar Franco, e encara com otimismo os tempos FH. Pouco
importa que o próprio FH esteja se lixando para isso. A Próxima Vítima não diz
que o presidente mudou e sim que o povo mudou. O que, convenhamos, é
infinitamente mais estimulante.
Ficcionalmente, a trama
policial lembra tempos de O Rebu, de Braulio Pedroso, o mais inovador de todos
os teledramaturgos. Não tão sofisticada – o que mais uma vez expressa o
equilíbrio procurado (e conseguido) entre o ousado e o popular. Apesar de bem
urdido – espera-se que, ao final, os autores não se emaranhem nos próprios fios
– e quem-matou-quem importa menos que a vasta paisagem humana. Não há vilões,
heróis, mocinhas. Ou há, mas só até certo ponto: o possível galã Juca é
moralista e gordo como uma barrica. O outro – Marcelo, magnífico José Wilker –
frio como aço e às vezes decididamente mau caráter. As heroínas podem ser
assassinas (Natália do Valle), psicopatas (Claudia Ohana) ou jecas (Suzana
Vieira). A moçada pode ser burra (a Yara de Georgiana Góes, o rosto mais puro
surgido na TV nos últimos tempos), gaga e grossa (Selton Mello), irritante
(Deborah Secco), gay (Lui Mendes), drogada (Pedro Vasconcelos), ambiciosa
(Camila Pitanga), obsessiva (Viviane Pasmanter) e por aí vai. Conclusão: nada
do que é humano deve espantar.
Aracy Balabanian, Yoná Magalhães, Rosamaria Murtinho |
Para estruturar tudo isso,
uma equipe de atores competentíssimos. Bom acompanhar atores crescendo até “acharem”
seus personagens. Suzana Vieira, de harpia à mãe humaníssima, o Zé Bolacha de
Lima Duarte, do fake subliterário a climas carregados de olhares malignos.
Gostoso ver contracenando duas soberbas mulheres em plenitude – Natália do
Valle e Mila Moreira. Delicioso assistir à dobradinha de humilhados e ofendidos
Nicette Bruno e Flavio Migliaccio e a do par perfeito de Guarnieri e Aracy
Balabanian, a verdadeira rainha da telenovela brasileira. Ou a oportunidade com
que foram introduzidos novos personagens – Otávio policial (Paulo Betti), a
pistoleira (Patricia Travassos), o michê bonitão (Alexandre Borges) e
principalmente a estonteante Romana de Rosamaria Murtinho.
Detalhes saborosos: a
fitinha vermelha da luta conta a Aids de Romana, aquele livro com reproduções
de Chagall atrás do sofá de Helena, uma almodovariana planta de papelão na casa
de Ana, os paulistaníssimos nomes inventados de ruas da Móoca (Miriam Batucada,
Adoniran Barbosa), as referências constantes à peças, filmes e figuras da cultura
brasileira contemporânea. Tanta qualidade não é pouco para um gênero cheio de
limitações, dogmas, vícios, tradições.
Não sei se A Próxima Vítima
ficará na história. Mais valem a humanidade e a sociedade que reflete e, além
da naturalidade ao lidar com temas até bem pouco considerados “escabrosos” , a
sua maneira decentíssima de colaborar para aquilo que todos, singela e
finalmente, queremos um Brasil melhor.
OESP – Telejornal, 8 de
outubro de 1995
Interessante.
ResponderExcluirMuito bom.
estou lhe esperando lá no meu blgue
Abraços
Adorei o Blog, e como boa "amante" das obras literárias voltarei sempre. Muito bom, eu adorei!
ResponderExcluirAmo A Próxima Vítima
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