Qualquer semelhança
com a realidade não é
mera coincidência
Se a Nara Leão, naquele velho disco, também
achava, por que não poderia eu também achá-lo? E se o Nirlando Beirão, tão
chique, tem um vizinho yuppie por que não posso ter coisa semelhante em minha
vida de retinas fatigadas? E confessá-lo de público – atente na expressão,
assim: Meus amigos são um barato. Um baratão. Nos dois sentidos: o do insólito
e o do inseto.
Meu amigo Pedro, por exemplo, é um barato no
sentido mais tradicional da expressão. Ou não? Fico um pouco confuso e,
pensando bem talvez ele seja mesmo uma curtição. O passatempo preferido dele é,
nos fins de semana, fazer tremendas vivências em Mauá. Fazer vivência vem a ser
o quê? Ora, cara, tá por fora: qualquer coisa pode ser uma vivência: um chá, um
baseado, uma caminhada. Importante é que seja em grupo. E que você vá fundo,
entendeu? Com direito a nirvanas e iluminações.
Meu amigo Pedro é superfeliz. Detesta quem
tem problemas: diz que é baixo-astral. Ele está sempre numa ótima. Detalhe:
mora num apartamento de andar inteiro frente para a praia, no Rio. Com os pais,
claro – embora tenha 30 anos. Mas tudo bem: para gozar de inteira liberdade,
ele pode usar uma coberturazinha absolutamente simples. Outro passatempo dele,
embora adore pedir carona, é dirigir o Monza zerinho de mamã. Daqueles que você
aperta botões e acontecem coisas tipo fontes luminosas, faróis de laser, show
de mulatas, etc. Mas ele, meu amigo Pedro, é singelo e franciscano: anda sempre
de camisetinha zurrapa e sandália havaiana. Tem certeza de que, um dia, vamos
todos viver em paz – na Era de Aquário. Confirmou isso no último verão passado
na Bahia, com uma pá de gente de cabeça feita.
Já minha amiga Kate, um pouco mais moça,
despreza meu amigo Pedro. Comenta: “Ele acha que Woodstock foi ontem. E ainda
nem desarrumou a mochila”. Ele comenta sobre ela: “quem não dormiu num sleeping
bag nem sequer sonhou”. A verdade é que não conheço nada nem ninguém mais
moderno (ou pós, nos dois sentidos: o do depois e os das carreiras) que minha
amiga Kate. Coberta de negro, cabelo raspado de um lado, vezenquando uma peruca
rosa de nylon. Naturalmente que é performática. E faz cursos sen-sa-ci-o-nais:
o último foi de vídeo-performance, um arraso. Minha amiga Kate acha tudo muito
antigo, mas concede ir ao Satã, dá umas bandas pelo Ritz e não pisa nem morta
no Pirandello. Acha que tudo é uma questão de pique e pá e era, sabe como? Fico
numas que só.
Meu amigo Betinho é radicalmente o oposto.
Faz a linha subir como esforço na vida. Quanto mais esforço, melhor. Quanto
mais alto, também. Tem visões futuristas com videocassetes, IBMS elétricas,
secretárias eletrônicas louras de olhos azuis, guarda-roupas completos para as
quatro estações comprados na Mr. Kitsch. Embora, no fundo, goste mesmo é de
Calvin Klein. Ou – em momentos de profunda verdade interior – um sólido Pierre
Cardin. Naturalmente, ele veio de baixo. Muito baixo. Tem um problema sério:
quando bebe, tem paixão por ouvir Alcione. E por tudo isso, se você for a um
restaurante com meu amigo Betinho, pode estar certo que a conta jamais será
dividida em partes iguais. Em alto e bom som, ele sempre dirá: “Mas eu não
tomei cafezinho!”.
Minha amiga Joana – ex-atriz, ex-cantora,
ex-escritora, ex-professora, ex-terapeuta, ex-traficante – há anos largou tudo,
pegou uns panos vermelhos, botou uma mala no pescoço, com aquele 3X4 de
Rajneesh, e foi embora pra Floripa (leia-se Florianópolis). É conhecida por lá
como Bodhira, que em sânscrito quer dizer flor de não lembro o quê. Será – haja
– lótus? Quando fui visitá-la, fizemos muita meditação caótica juntos. Super
vivência, experimente, se pintar. É um barato.
Enfim, esses são alguns. Tem mais, talvez
para uma Parte II. Mas como todo ficcionista, sempre procuro deixar muito claro
que qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas – bem, você sabe. E eu
adoro meus amigos. Simplesmente adoro.
OESP, Caderno 2 - 8 de abril de 1986
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