sexta-feira, 27 de julho de 2012

A Grande fraude de tudo




O autor de O Inventário do Irremediável, Limite Branco e O Ovo Apunhalado, é gaúcho de Santiago e tem 28 anos. Iniciou mas não concluiu cursos de letras e de arte dramática. Tinha 18 anos quando escreveu Limite Branco.

Andei por muita estrada. Morei em muita comunidade. Sou meio nômade, não consigo ficar mais de um ano numa cidade. O que procuro é o que todo mundo procura. Amor, felicidade, liberdade, sentir-se digno. Assumi essa procura e portanto a minha instabilidade. Tentativas de suicídio, pirações, dançações, viagens, divãs de psicanálise, porradas as mais variadas, tangos & rock, ordens de despejo, abandono de dois cursos universitários, iluminações ilusórias, excesso de cigarros, insônias, macrobiótica, solidões, teatro, amores malditos – esse o meu background. O mais engraçado é que parece proibido falar ou escrever sobre ele, mesmo tendo vivido. Mês passado, numa barraca em Santa Catarina, descobri que tudo que eu precisava cabe na minha mochila (aliás, emprestada, ainda não tive grana para comprar uma).

Literatura é vida. Sou um escritor, mas meu compromisso principal é com a vida. Em todas as suas manifestações. Não acredito naquele tipo de cara que fica sentado entre livros enquanto a vida passa além da janela, sem que ele a toque. Os livros são importantes.  Mas a vida é sempre muito mais. Literatura é também magia. Magia é aquilo que não compreendemos com a razão, e que no entanto existe.

Nasci num tempo (1948) em que a barra começava a ficar pesada demais para que as pessoas conseguissem continuar acreditando no mundo que elas próprias inventaram. Passei a maior parte da infância conversando com uma bergamoteira. Agora descobriu-se que elas sentem e pensam. O menino que eu fui sempre soube disso. A repressão posterior, a deseducação na escola, na família, no trabalho, na sociedade em geral, encarregou-se de atrofiar a sensibilidade natural. Minha luta é no sentido de recuperar o mais possível aquela visão de mundo (que não era uma visão, mas um estar-dentro e um estar-com). “Eu nasci descalço/ pra que tanta pergunta?”

Portanto não sou exatamente um intelectual. Não suporto normas rígidas, seja de comportamento ou de criação literária. Uma letra de Rita Lee, para a minha cuca, pode ser tão importante quanto um poema de Fernando Pessoa. Por que não? E não me venham com essas estórias de que pertenço a uma geração alienada & colonizada. Pertenço a uma geração que sacou a grande fraude de TUDO, a partir do próprio comportamento humano. Viajei um pouco e pude perceber que esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Já nos anos 50 Norman Miller previa bandos de psicopatas-filosóficos (hipsters, como ele chamou) desligados da cultura e da civilização estabelecida. Eles existem e estão por aí segurando a barra, não dando muita bandeira porque senão acabam em clínicas ou presídios, como muita gente que conhecemos (e não venham me dizer que não).

Nossa mente é uma grande colagem. Somos a confluência de toda a esquizofrenia dessas influências disparatadas. Bob Dylan disse certa vez: “minhas únicas influências são meus olhos, tudo que eles viram, e os meus ouvidos, tudo que eles ouviram”. Eu também. Monteiro Lobato, mas também As Mil e Uma Noites e A Salamanca do Jarau, mas também Batman e Nyoka, a Rainha das Selvas. A sanfona de Adelaide Chiozzo, mas também o blusão de nylon de James Dean. Platão e Noel Rosa. Libertad Lamarque e Timothy Leary. Foi o prato que me serviram quando superei o mingau de aveia. Ser seletivo por quê? Como Jorge Mautner, acho que o negócio agora é comer desse banquete. E não ficar tentando uma pureza perdida. SCHIZ = quebrado. PHRENOS = alma ou coração; trata-se de assumir a esquizofrenia do mundo e a nossa própria.

                         Escrita - Revista mensal de literatura, 1976


Breve, a parte final do depoimento de Caio Fernando de Abreu aos 28 anos, com muito sobre literatura

2 comentários: