domingo, 9 de setembro de 2012

Por telepatia





                                               A Bela e a Fera, de Clarice Lispector

Para quem aprendeu a amar Clarice Lispector, este livro é uma verdadeira dádiva, além de documento importante para os estudiosos de sua obra. São oito contos inéditos, de um período que abrange 37 anos de ininterrupto, profundo e sofrido trabalho de criação literária. Os seis primeiros foram escritos entre 1940 e 1941, quando a autora tinha apenas 14 ou 15 anos* – antes, portanto, de sua estreia com o romance Perto do Coração Selvagem, em 1944. Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice, organizou esses originais, enquanto Olga Borelli (que já havia coordenado o póstumo Um Sopro de Vida) acrescentou os dois últimos contos escritos por Clarice, pouco antes de sua morte, em 1977.

Os contos adolescentes de Clarice pouco têm de adolescentes. Já se encontram, ali, alguns dos elementos dos vários livros posteriores: o mergulho psicológico, a presença da morte, o choque entre as realidades objetivas e subjetivas, a solidão e a incomunicabilidade humanas, a tentativa de penetração e desvendamento de camadas escondidas da alma – tudo isso está presente nestas seis peças que, quase espantosamente, podem ser lidas não apenas com curiosidade, mas com autêntico prazer.

No rapaz suicida (em História Interrompida), na adolescente desorientada que procura a consultoria sentimental de uma revista (Gertrudes Pede um Conselho), ou na mulher casada que foge do marido para ligar-se a outro homem (na pequena e densa novela Obsessão), podem ser localizadas as sementes das mesmas personagens que viriam a habitar seus livros futuros. Com a diferença que, aqui, Clarice ainda se preocupa com a “história”, que foi pacientemente desestruturando, até chegar em obras como A Paixão Segundo G.H. ou Água Viva.

Já em 1941, ela saia-se com ousadas inovações formais, como os dois pontos que concluem Mais Dois Bêbados. Cerca de trinta anos mais tarde, intrigaria os críticos com a simples vírgula que iniciava Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. E aos 14 anos era suficientemente lúcida e bem humorada para fazer ironias como esta: “No entanto, para quem leu um pouco e pensou bastante nas noites de insônia, é relativamente fácil dizer qualquer coisa que pareça profunda”.

CRISTALINA – A ironia é a marca principal dos dois últimos textos: Um Dia a Menos e A Bela e a Fera. No primeiro, uma virgem balzaquiana suicida-se quase por acaso, ao descobrir distraidamente a própria individualidade. No segundo, que lembra o sarcástico humor social de A Hora da Estrela, Clarice narra o patético e hilariante encontro entre uma grã-fina e um mendigo. “Justiça social” são as palavras que ocorrem vagamente à mulher, enquanto seus valores desabam e ela se descobre, também, uma mendiga: “Nunca pedi esmola, mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha”.

Clarice não gostava que os leitores fizessem esforço para lê-la. Não se considerava um “escritor racional”. Preferia estabelecer uma espécie de telepatia com o leitor, e o livro então lia-se como que por si próprio. Para quem a considera, ainda, uma escritora difícil, hermética, talvez A Bela e a Fera seja o meio mais fácil de estabelecer essa comunicação e entrar em contato com um universo onde é dito o indizível da sensibilidade humana. Nele, Clarice está mais cristalina do que nunca. E tão misteriosa e indefinível como sempre – “pura e cruel” como a luz do sol que descreve num conto escrito há quase quarenta anos.

A volta de Clarice, ainda que póstuma, reascende a esperança de que, dentro da literatura latino-americana, existia uma autêntica e expressiva voz brasileira. Europeia, requintada, minuciosa e misteriosa, Clarice permanece como uma das manifestações mais intensas do escritor nacional. E A Bela e a Fera adquire nova importância, quando lança raios de luz sobre todas as outras obras de Clarice, de A Maçã no Escuro a Um Sopro de Vida. Escrever, para Clarice Lispector, era um ato confundido com o próprio inventar da vida de cada dia. No campo da prosa, a escritora consegue aproximar-se, em termos internacionais, da elaboração de uma Marguerite Yourcenar, a autora de A Obra no Escuro. No campo nacional, é provável que Clarice seja o Carlos Drummond de Andrade do romance brasileiro. Como Drummond, ela jamais escrevia por vaidade, por ter uma “mensagem” a transmitir ou por desejar construir um objeto perfeito. Clarice escrevia como quem compõe música: escutando o ritmo do mundo, obrigada a vibrar junto com ele.
                                                         
                                                                Veja, 9 de janeiro de 1980

Nota: "A verdade também é que Clarice era deliberadamente misteriosa. Apagava rastros, diluía pistas. Ninguém sabe ao certo o ano de seu nascimento, na Ucrânia. Ela sempre disfarçava, mudava de assunto, confundia": escreveu Caio F. em Na Trilha dos Mistérios de Clarice http://caiofcaio.blogspot.com.br/2010/08/na-trilha-dos-misterios-de-clarice.html
A idade de Clarice Lispector permaneceu por anos um mistério. Hoje, sabe-se que ela nasceu em 1920 e, portanto, tinha 20 ou 21 anos “entre 1940 e 1941” quando escreveu os contos que Caio F. cita no início. 

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