segunda-feira, 9 de março de 2015

Bonjour Shirlei



Algumas vidas, sim, podem caber perfeitamente nos trilhos de um bonde. São essas arrumadas, temerosas e tão tolas que supõem que os bondes chegarão em segurança a seu destino. Mas outras (sempre as mais interessantes) não cabem em trilho algum. Têm um preço, essas vidas que correm desgovernadas, à procura não de ilusórias seguranças materiais, mas daquele "ver a face de Deus" de que falava Cazuza. O preço? A rejeição social, a maldição, a marginalidade. O prêmio? Quem sabe apenas a intensidade. Chegar mais perto de Deus. E também do Diabo. 


Fora dos trilhos corre a vida do travesti Shirlei, devolvido ao Brasil direto do aeroporto em Paris. A navalha que corta seus sonhos (e talvez sua vida) tem estúpidas razões. Ela/ele ousou revoltar-se contra o mais rigidamente estabelecido dos papéis - a própria sexualidade. O curta-metragem de Gilberto Perin, com roteiro dele e Alice Urbim, em secos oito minutos nos confronta com uma pergunta delicada. Por que, caralho, Shirlei deve ser punida e impedida de viver seu sonho?



A resposta é simples. Nossa sociedade não admite que alguém escolha viver sua vida fora dos trilhos rígidos de um bonde. Quase sem palavras, com atores extraordinariamente expressivos (em especial a protagonista Rebecca McDonald), nos joga na cara outra questão ainda mais assustadora. Que espécie de País tornou-se esse miserável Brasil de fim de século em que, para viver com certa dignidade, é preciso abandoná-lo? No caso patético de Shirlei, ser proibida até de executar o triste ato do abandono.



O filme - curto, preciso, comovente - é belíssimo. Depois de vê-lo fiquei pensando assim: ah, como eu gostaria um dia de assistir outro filme exatamente como este, mas com happy end. Um filme em que todas as Shirleis do mundo - e todas as vidas que correm fora e longe dos trilhos de um bonde - dessem "certo". Então, em vez de AU REVOIR SHIRLEI poderia chamar-se BONJOU SHIRLEI. E nele, como nos velhos contos de fadas, todos os malditos viveriam felizes para sempre.

                        
                          No cartaz do curta Au Revoir Shirlei, 1991 


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