quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Lamúrias com chantilli

Daí um senhor das Minas Gerais escreve para reclamar das lamúrias de Caio F. e ele, que nunca responde cartas de leitores, responde. A crônica é uma maravilha. Uma espécie de resposta aos haters, antes das redes sociais.


                                      Lamúrias com chantilli

Só mesmo as mães são felizes.
Ou: caretas de Paris e New
York sem mágoas estamos aí

Recebo muitas cartas de leitores. Nem sempre - ou quase nunca -  respondo. Fico contente e grato, mas não tenho tempo.  Também porque a maioria é tão legal que nem pede resposta. Só dizem coisas boas, dão força. Ter leitores me espanta, não consigo acreditar muito nisso. As cartas, alguns telefonemas também, desmentem essa sensação. E é aí que sinto medo, porque vem o peso da responsabilidade sobre o que dizer. Mas se deixo o medo baixar, eu travo e não escrevo nada. Então, quando sento para escrever, é como se não tivesse leitor algum em parte alguma do mundo. Fico só preocupado em dizer alguma coisa que eu mesmo realmente acredite. Que seja verdade dentro de mim, e assim será muito amplo: porque eu sou todo mundo, entende? Quem é da mesma família, entende sem muita explicação. Quem não é, fazer o quê? Dar detalhe cansa.
Mas eis que, semana passada, chegou uma carta irada. Um senhor lá das Minas Gerais dizia-se cansado das minhas "lamúrias". Falava coisas como "pessimismo mórbido e doentio" (oh Deus, estes oito anos de análise e uma alta servem pra quê? e - medo - dizia-se temeroso que eu "influenciasse os jovens a cometer suicídio". Nefasto Caio F.: seria eu tão poderoso e fatal assim? Uma espécie de Jim Jones da crônica.
Isola rápido. Ô, meu senhor, não quero isso não. Queria outro mundo, outra ordem social, outras relações humanas - e me sinto um tanto idiota tentando explicar o que me parece óbvio. Mais carinho, mais beleza, mais justiça, mais alegria. Qualquer coisa que qualquer pessoa razoavelmente normal (mas "de perto ninguém é normal", lembra?) quer. Mesmo um punk, só que o jeito de querer do punk é do avesso. E o avesso é um jeito tão bom quanto qualquer outro. Além disso, não tem só cara e coroa. Tem cara, coroa - e quina também.
E é aí que não entendo certas pessoas. Principalmente essas que chamo de "as trolhas do apocalipse". Sabe aquelas bem-intencionadérrimas? Sabe aquela linha o-que-será-do-futuro-de-nossas-criancinhas? Sabe aquela linha vamos-valorizar-o-sorriso-de-uma-criança-o-voo-de-uma-borboleta-e-o-azul-do-firmamento? Viver é barra, meu senhor, Deus é naja e o amor - com licença de Maria Rita Kehh - é uma droga pesada. E nada tenho contra najas, barras e drogas pesadas. Só não acho que fazer aquele cretiníssimo "jogo-do-contente" de Pollyana seja a melhor maneira de enfrentar e compreender o real. Todo mundo é médico e monstro. A vida também. Você deve ficar ao lado do médico, mas encarar o monstro quando ele pinta. Senão, meu caro, um dia ele te devora.
Acho que todo mundo interessado em situar-se um pouco nestes anos 80 deveria ouvir pelo menos uma vez Só as Mães São Felizes, de Cazuza. Tá tudo lá. Amargura não existe, quando se tenta compreender. E pessimismo, pra mim, é palavra sem sentido quando penso em Chernobyl ou Cubatão. Nem sempre o que é fácil é bom - me dizia um Dragão, naquele domingo de chuva no aeroporto. Auto conhecimento, e por extensão inevitável o conhecimento dos outros e do mundo, não é exatamente um mar de rosas. Mas nunca tive medo de nada - de dentro ou de fora - que pudesse ampliar minha consciência. Acho que esse é o único jeito digno de ser. Por isso mesmo, durmo em paz toda noite. Muitas vezes só, confuso, angustiado, assustado - mas absolutamente certo que sou uma pessoa legal. Ainda não nasceu a trolha do apocalipse capaz de me provar o contrário.
Metade luz, metade treva. E esse fio de navalha entre os dois, corda bamba afiada onde você, sombrinha aberta da mão, pé ante pé se equilibra. Ou tenta. Sem rede de segurança, mas com um sorriso nos lábios, e um grande, sonoro, enorme axé! no coração. Pra todos nós.
 OESP, Caderno 2, quinta-feira, 9 de outubro de 1986



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