quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Viver é expor-se ao perigo. Escrever também



A capa

Era 1976 e Caio Fernando de Abreu foi um dos sete novos escritores brasileiros reunidos pelo jornal alternativo Opinião para falar sobre a literatura brasileira.  "Eles não são best-sellers, nem costumam dar entrevistas sobre o boom literário que, acreditam alguns, assola o país. São apenas escritores, cientes de que existem polêmicas mais urgentes do que, por exemplo, a divisão entre populistas e vanguardistas".  Sete autores contra o beletrismo e as panelinhas literárias era o título da matéria de capa da edição de abril, quatro páginas. Caio tinha  já havia lançado três livros: Inventário do Irremediável, Limite Branco e O Ovo Apunhalado. Abaixo o que ele falou na entrevista - segue a pergunta e sem o que os demais entrevistados falaram



A abertura da matéria

Opinião: Qual é o papel social do escritor no Brasil e na América Latina hoje em dia?

Caio F.: O papel social do escritor no Brasil, na América Latina e no mundo inteiro será sempre, e sob quaisquer condições, lutar pela liberdade de expressão.O intelectual será sempre um contestador. Denunciar, sempre, é a sua função. Denunciar a violência, a corrupção, a repressão, a intolerância. Ajudar na recuperação da dignidade humana.

Opinião: Mas existem fatores imediatos que agravam esta crise, que condicional hoje, de forma diferente, a expressão literária?

Caio F: Impossível separar, hierarquizar: é um todo. As barreiras do escritor brasileiro em relação à literatura são as mesmas do homem brasileiro em relação à vida. Ao outro. A si mesmo.

Opinião: Mas então não existem vínculos?

Caio F: O presente é sempre resultante do passado, uma consequência. Ninguém se desvencilha, facilmente, de suas origens, de suas raízes. Mas creio que um escritor deva ser fundalmente um homem de seu tempo. Seria ridículo, irreal e anacrônico escrever, em 1976, como Machado de Assis, por exemplo. Mas para compreender o presente, devemos conhecer o passado, a História. Para nos libertarmos do passado é necessário assumir o presente. E encarar o futuro, se é que ele existe.

Opinião: Parece que predomina, nesses termos, a personalização da obra, não há propriamente um movimento literário, em termos organizados, certo?

Caio F: Eu não sei, não... Dizem que escrever um romance hoje em dia  é procurar a melhor maneira de assassinar o romance. Não acredito nisso. O romance já foi assassinado por Joyce, faz muito tempo. E entre nós, por Oswald e Mario de Andrade. Não gosto dessa diferenciação conto-novela-romance. Existem textos de ficção. A rigidez só pode limitar. A liberdade total de criação é o caminho. Não só em literatura, mas em qualquer forma de arte, e também na vida.

Opinião: E que lugar ocupa o Realismo Mágico na literatura brasileira?

Caio F: O Realismo Mágico tem na literatura brasileira o mesmo lugar que em outros sistemas sociais semelhantes. Na medida em que não se permite ao artista ser claro, ele recorre à metáfora do presente. Mas também existe o pseudo-Realismo Mágico sem vínculo algum com a realidade. Não é nada disso. Trata-se, repito, de assumir o nosso tempo. Aqui e agora.

Opinião: E o autor jovem deve lutar, então, para ser editado?

Caio F: Lutar não só para ser editado, mas também para ser distribuído - o maior problema - divulgado e lido. Lutar sempre. Impor a nossa presença. Não permitir que nos vaporizem ou invisibilizem. Existimos e temos muito para contar, e acreditamos em nossas histórias, em nossas vivências. Se achamos que podemos dar ao outro algo de bom, então vamos lá. Fé cega e faca muito bem amolado. 1976 é o ano de São Jorge. Afiar a lança para matar novamente o dragão
.
Opinião: Mas nós já discutimos os condicionantes, e já falamos a respeito do consumismo que grassa por aí. Lutar, certo, de peito aberto, sim, mas e os riscos que se corre?

Caio F: O risco a que eu me exponho, publicando, é o mesmo que corro estando vivo. Mas, realmente vivo, consciente e participante. Viver é expor-se ao perigo. Escrever também. Sempre tem um Hélio Pólvora nos acusando de plagiar um conto que nunca lemos. Medo? Porquê? Se não somos editados, não somos distribuídos, não somos divulgados, não somos lidos e nem sequer respeitados em nossa integridade, o que temos a perder?

Opinião: E não é nesse contexto que se formam as panelinhas?

Caio F: Existe uma lealdade básica que não deveria ser atraiçoada. As coisas só são fortes se forem grupais. Divisões internas, competiçoezinhas provincianas, panelinhas? Ridículo e inútil. Como diz Nei Duclós, poeta gaúcho, em Outubro: "Confio na solidão que nos une / e na vontade de quebrar tudo / que cresce aos poucos como um fruto".



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