Umbigo do Brasil, cravado no
Centro da barriga da miséria,
Vamo comer, vamo comer poesia
“Animal arisco” – eu caminhava pela rua quando ouvi o grito. No meio do barulho, do torpor desse calor viscoso que andou fazendo. Claro, agudo, relâmpago no meio da tarde, aquele gemido. Parei, sem entender. O grito foi sendo levado para longe – “me senti sozinho/ tropeçando em meu caminho/ à procura de ajuda, um lugar, um amigo” - enquanto eu compreendia. Era Caetano Veloso cantando Fera Ferida, de Roberto e Erasmo Carlos, provavelmente num rádio de carro que se afastava.
O gemido rasgou a tarde em duas. Fiquei ali parado no meio da dor, assim (deus, quem disse isso uma vez?) “ferido de mortal beleza”. Provavelmente com aquela “expressão amarga” – como diz o Osmar Freitas Jr. – “de quem tivesse acabado de chupar (?) uma crônica de Caio Fernando de Abreu”. Olhei em volta: ninguém mais tinha ouvido. Estavam todos com uma expressão de... – bom, deixa pra lá. Não consigo entender essa pressa em rotular, carimbar, colocar em prateleira: é assim, doce, amargo, leve, pesado. Idéias feitas, congeladas, mortas. Safári no cemitério, preconceito. Fiquei ali parado, o grito vivo de Caetano na cabeça.
Então pensei: Caetano não dá mais entrevista. Tá certo. Não há nada a dizer, não há nada para explicar. Ou você entende, através da música e até do silêncio, e estamos conversados (e enriquecidos). Ou você não entende nada, porque seu repertório é outro. Então, numa gestalt, também estamos conversados. Ninguém enche o saco de ninguém, você me deixa em paz, eu te deixo em paz – certo? Fica combinado assim: se não te atrapalho, você me dá licença de ser assim do jeito que sou?
Fui pra casa ouvir mais Caetano. Deitei, aquele calor paulistano, de cimento. Peguei o release de Maria Clara Jorge – ela diz “Caetano é o umbigo do Brasil”. Sim, em vários sentidos. Aí li o que diz Renato Costa, coordenador do departamento internacional da Polygram: “Há anos Caetano dá todos os toques sem cobrar nada e o Brasil não saca. Azar do Brasil”. Azarésimo. E azar o seu, se não ouvir.
Pega o disco, tá tudo lá. O Brasil negro, já na foto (linda de Flávio Colker (sobre concepção de Luiz Zerbini) na capa, no candomblé que passeia seus axés por Depois Que o Ilê Passar e Ia Omim Bum, ou em Eu Sou Neguinha? Tá lá o discurso político em Vamo Comer: “Quem vai equacionar as pressões/ do PT, da UDR/ e fazer dessa vergonha uma nação?” Tem o cinema falado de Giulietta Massina – “ah, minha vida sozinha/ ah, tela de uma outra luz” -, tem a solidão das estradas em Noite de Hotel: “Estou a zero, sempre o grande otário”. E aquela que deve ser uma das mais belas letras (e músicas) feitas nos últimos anos neste país, O Ciúme. Numa tarde cheia de luz, no rio São Francisco, sobre toda a paisagem “paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. O humano torturado projeta sua imagem interior sobre a paisagem indiferente, alheia à dor individual. Mas de dentro dessa tortura, que nada alivia e ninguém pode perceber, é que o ser olha e suspeita: “Tudo é perda, tudo quer buscar – cadê?”
“Animal arisco” – eu caminhava pela rua quando ouvi o grito. No meio do barulho, do torpor desse calor viscoso que andou fazendo. Claro, agudo, relâmpago no meio da tarde, aquele gemido. Parei, sem entender. O grito foi sendo levado para longe – “me senti sozinho/ tropeçando em meu caminho/ à procura de ajuda, um lugar, um amigo” - enquanto eu compreendia. Era Caetano Veloso cantando Fera Ferida, de Roberto e Erasmo Carlos, provavelmente num rádio de carro que se afastava.
O gemido rasgou a tarde em duas. Fiquei ali parado no meio da dor, assim (deus, quem disse isso uma vez?) “ferido de mortal beleza”. Provavelmente com aquela “expressão amarga” – como diz o Osmar Freitas Jr. – “de quem tivesse acabado de chupar (?) uma crônica de Caio Fernando de Abreu”. Olhei em volta: ninguém mais tinha ouvido. Estavam todos com uma expressão de... – bom, deixa pra lá. Não consigo entender essa pressa em rotular, carimbar, colocar em prateleira: é assim, doce, amargo, leve, pesado. Idéias feitas, congeladas, mortas. Safári no cemitério, preconceito. Fiquei ali parado, o grito vivo de Caetano na cabeça.
Então pensei: Caetano não dá mais entrevista. Tá certo. Não há nada a dizer, não há nada para explicar. Ou você entende, através da música e até do silêncio, e estamos conversados (e enriquecidos). Ou você não entende nada, porque seu repertório é outro. Então, numa gestalt, também estamos conversados. Ninguém enche o saco de ninguém, você me deixa em paz, eu te deixo em paz – certo? Fica combinado assim: se não te atrapalho, você me dá licença de ser assim do jeito que sou?
Fui pra casa ouvir mais Caetano. Deitei, aquele calor paulistano, de cimento. Peguei o release de Maria Clara Jorge – ela diz “Caetano é o umbigo do Brasil”. Sim, em vários sentidos. Aí li o que diz Renato Costa, coordenador do departamento internacional da Polygram: “Há anos Caetano dá todos os toques sem cobrar nada e o Brasil não saca. Azar do Brasil”. Azarésimo. E azar o seu, se não ouvir.
Pega o disco, tá tudo lá. O Brasil negro, já na foto (linda de Flávio Colker (sobre concepção de Luiz Zerbini) na capa, no candomblé que passeia seus axés por Depois Que o Ilê Passar e Ia Omim Bum, ou em Eu Sou Neguinha? Tá lá o discurso político em Vamo Comer: “Quem vai equacionar as pressões/ do PT, da UDR/ e fazer dessa vergonha uma nação?” Tem o cinema falado de Giulietta Massina – “ah, minha vida sozinha/ ah, tela de uma outra luz” -, tem a solidão das estradas em Noite de Hotel: “Estou a zero, sempre o grande otário”. E aquela que deve ser uma das mais belas letras (e músicas) feitas nos últimos anos neste país, O Ciúme. Numa tarde cheia de luz, no rio São Francisco, sobre toda a paisagem “paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. O humano torturado projeta sua imagem interior sobre a paisagem indiferente, alheia à dor individual. Mas de dentro dessa tortura, que nada alivia e ninguém pode perceber, é que o ser olha e suspeita: “Tudo é perda, tudo quer buscar – cadê?”
Porque tem luz e sombra. Uma engendra a outra, uma nasce de dentro da outra. Tem amor e ódio, tem encontro e perda, tem identificação e indiferença. Tem dias em que tudo se encaixa, como no momento das peças finais dos quebra-cabeças, e tem aqueles em que tudo se desencaixa numa aflição tonta de não haver sentido nem paz, amor, futuro ou coisa alguma. Tem dias que nenhum beijo mata a fome enorme de outra coisa que seria mais (e sempre menos) que um beijo. Mas tem aqueles outros, quando um vento súbito e simples entrando pela janela aberta do carro para bater nos teus cabelos parece melhor que o mais demorado e sincero dos beijos. Precisamos dos beijos, precisamos dos ventos. Tem dias de abençoar, dias de amaldiçoar. E cada um é tantos dentro do um só que vê e adjetiva o de fora que escapa, tão completamente só no seu jeito intransferível de ver: “E eu sou só eu só eu só eu”.
A voz e a poesia de Caetano passeiam nesse limiar – Limiar é tão bonito, parece limite, parece ar, um limite no ar? – entre os opostos. Umbigo do Brasil, como diz Maria Clara/ Cacaia. Cravado no centro, origem, raiz, verdade. Vamo comer, vamo comer Caetano: bom apetite.
CADERNO 2 - OESP - 1987 A voz e a poesia de Caetano passeiam nesse limiar – Limiar é tão bonito, parece limite, parece ar, um limite no ar? – entre os opostos. Umbigo do Brasil, como diz Maria Clara/ Cacaia. Cravado no centro, origem, raiz, verdade. Vamo comer, vamo comer Caetano: bom apetite.
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