domingo, 12 de dezembro de 2010

A Aids é a minha cara: Anos dourados

“Sou o mais velho de cinco irmãos, três homens e duas mulheres. Somos de Santiago do Boqueirão. Meu pai é militar reformado e minha mãe, quando nasci, era professora primária. Depois, foi professora de história, e mais tarde, graduou em filosofia. Minha mãe é uma tirana, uma gauchona. Recentemente foi ao médico porque sentia tonturas. Voltou e disse: “imagina que o médico afirma que eu tive um derrame e deveria estar paralisada do lado esquerdo. Imagina se eu vou ficar paralisada”. Ela fez 70 anos. Controla absolutamente tudo, os sons, os espaços. Já meu pai é muito quieto, reformou-se com 40 e poucos anos e nunca mais trabalhou. Quando ela viaja e ficamos só nos dois, instala-se um completo silêncio. É maravilhoso.

Comecei a escrever aos seis anos. Antes eu já contava histórias. Minhas tias contam que, na horas de dormir, elas iam contar histórias e eu invertia o jogo. Eu é que contava. Aprendi a ler muito cedo, filho e neto de professora, e saí escrevendo. Com 13 ou 14 anos, escrevi um romance que se chamava A Maldição dos Sant-Marie, que incluí em Ovelhas Negras, essa espécie de livro póstumo que lancei.

Cresci muito rápido, com 12 anos tinha mais de 1,80 metro. Via com horror meu corpo crescendo. Eu não queria ser adulto, achava uma besteira, dava muito trabalho. Continuei crescendo e a voz era a de um menino de 12 anos. Eu falava e as pessoas riam. Era ridículo, feio. Quando fui trabalhar na Veja, em São Paulo, com quase 20 anos, minha voz ainda era assim. Procurei um foniatra e ele disse que as cordas vocais provavelmente tinham ficado viciadas e eu tinha de fazer um tratamento caríssimo.

Em 1964, vim para Porto Alegre fazer o curso colegial no Instituto Porto Alegre, em cima do morro de Petrópolis. Era um internato masculino. Eu sempre fui meio selvagem, solitário, não gostava de falar, não tinha uma identidade com os rapazes da minha idade. Eles gostavam de futebol, eu queria ficar lendo. Não conseguia me relacionar bem. Os quartos eram para dois alunos mas, como não me dava bem com quem morava comigo, tinha o privilégio de ter um só para mim.

Minha primeira experiência homossexual aconteceu quando estava no IPA. Está num conto meu, O Sargento Garcia. Só que nessa primeira vez não aconteceu nada, fiquei aterrorizado, me pareceu muito sórdido. Num domingo à noite, fui seguido por um homem. Ele conversou e marcou encontro para três dias depois, no centro da cidade. Eu não sabia bem do que se tratava. Fui – sempre vou – morria de curiosidade. Ele me levou a um lugar horrível, muito feio, com lençóis sujos e um rolo de papel higiênico na cabeceira. Me jogou em cima da cama, completamente sem romantismo. Me fez segurar o pau dele e eu saí correndo. Tinha 16 anos. Sempre ficou na minha cabeça o desejo de que a primeira vez fosse uma coisa romântica.

Já a primeira experiência sexual com uma mulher ocorreu alguns anos depois. Fui estuprado em São Paulo, aos 19 anos. Ainda era virgem. Ocorreu no período em que fui trabalhar na Veja, por uma colega casada, bonita e atormentada, que hoje mora na Itália. Ficamos muito amigos. Num domingo chuvoso, tocou a campainha, abri a porta e era a Márcia, toda molhada. Não me deixou dizer nada. Me jogou na cama e me estuprou. Foi ótimo. Uma coisa que não entendo em amigos homossexuais é que nunca tiveram experiência com mulher. Se não têm parâmetros, como é que podem escolher?

Por esse tempo, fugindo de problemas com o DOPS, fui morar com a escritora Hilda Hilst, em sua fazenda de Campinas. Eu fiquei de secretário, ela escrevia e eu datilografava. Líamos muito, estudávamos astrologia, quiromancia, essas coisas. Aí aconteceu a história da figueira. Tinha uma figueira enorme na fazenda. A Hilda dizia: “Cainho, essa figueira é mágica. Quando a gente tem um problema muito grave, fala com ela e ela resolve”. Meu maior problema era a voz de menino. Uma noite, abracei a figueira e pedi para a voz mudar. Voltei para o quarto, peguei um livro de Fernando Pessoa que estava lendo e no terceiro verso a voz ficou assim, grave. Pedi com tal concentração e fé que, acho, eu mesmo me curei. A partir da mudança da voz fiquei mais seguro. Aí me assumi como adulto. Essa história é verdadeiríssima. A Hilda Hilst é testemunha.

Escrever era o que eu sabia, podia e devia fazer. Até hoje sou um tigre com minha mãe, meus irmãos. Não admito que se metam na minha intimidade em relação à escrita. A porta de meu quarto fica fechada. Odeio quando estou ali na escrivaninha, escrevendo, com uma idéia pela metade e vem um sobrinho bonitinho gritar no meu ouvido. Fico uma fera, sou capaz de matar. Sempre trabalhei em jornal ou revista, mas quando via que começava a prejudicar meu ofício, largava e caía fora. Pegava o FGTS e ia escrever. É uma coisa de determinação mesmo. Em um país como o Brasil, em que nada estimula a isso.

Eu fui seguindo meu instinto, as coisas que tinha vontade de fazer. Só isso. Não vejo nada de excepcional. Lembro de uma noite na fronteira gaúcha, em Itaqui, onde moravam meus avós. Falei para meu avô: “Um dia, quando eu for grande, vou morar na Suécia”. Devia ter uns nove anos e meu avô, que se chamava Aparício Medeiros, um nome bem gauchesco, morreu de rir. E não é que eu fui mesmo morar na Suécia? Desde criança, eu tinha certas intuições. Pelo lugar que nasci, pela minha formação, eu deveria ser advogado ou professor, e teria uma vida banal, com filhos, com a minha bissexualidade sob controle. Isso me parecia muito falso e não era o que eu queria. Paguei um preço alto? Era o meu destino, o que me foi reservado para fazer. Eu precisava cumprir assim. A minha vida sempre me pareceu perfeitamente lógica. Acho que tudo aconteceu do jeito que tinha que acontecer. Está tudo certo. Eu não atraiçoei nenhum dos meus impulsos”.
                             
                                Breve: A Aids é a minha cara: Anos Rebeldes
                                                e
                                           A Aids é a minha cara: Anos de Chumbo

                          Depoimento a Fátima Torri - Revista Marie Claire  - Set 1995

12 comentários:

  1. Sinceramente. Eu fico aguardando seus posts, dia após dia. Amo esse cara. Caio F. Maravilhoso. Um gênio. A cada post eu me surpreendo um pouco mais com ele.
    Um gênio.
    Não tem mais.

    Beijo

    Carla

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  2. Passei para conhecer seu espaço e já estou adorando... Depois eu volto para lêlo com mais calma. Abraços Fraternos!

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  3. Caio F. é ludismo aos meus olhos.
    Meus parabéns por tudo que construiu! Hoje sei que tudo é capaz, só depende da força de vontade para conseguir chegar onde quer que seja!

    Forte abraço.

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  4. Obrigada por disponibilizar textos do Caio F.!!

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  5. pq a url é caiofcaio1.blogspot.com?

    dá pra ser simplesmente caiofcaio como no twitter!
    é só mudar a url nas configurações.

    está disponível! :)

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  6. Gracias pelos comentários. E Amana, obrigado pela observação. Tirei o 1...rs
    ,

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  7. Adorei o texto. Muito bom conhecer mais sobre o Caio. s2

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  8. Em que livro posso encontrar essa crônica?

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    1. Ei, que eu saiba não está em livro, Eric. Como informa no final, foi publicada na revista Marie Claire. E tá inteira aqui.

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  9. Eu nunca precisei transar com mulher,pra saber que sentia repugnância pelo sexo oposto.Meu problema sempre foi querer ser mulher.

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