quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A Primeira Dama da Literatura



Depois de seis anos sem publicar, Lygia Fagundes Telles lança a coletânea de contos
                                                        A Noite Escura e Mais Eu

Ela ficou mas a gota de sangue que pingou na minha luva, a gota de sangue veio comigo” – assim começa a coletânea de nove contos inéditos A Noite Escura e Mais Eu, de Lygia Fagundes Telles, na primeira frase de Dolly. E termina, na última frase de Anão de Jardim, história que encerra o livro: “Seja feita a Vossa vontade e (…) então aceito também ser a estrela menor da grande cauda levantada no infinito no infinito deste céu de outubro”. Como dentro de um parêntese, todo o universo de Lygia concentra-se entre essas duas frases, o sangue inevitável das dores da condição humana e a talvez redentora aceitação não só do Divino, mas também da insignificância e humildade que essa condição impõe. A repetição da palavra “infinito” acentua a idéia de eterno retorno, e a referência ao “céu de outu/bro” remete à primavera e ao renascimento de tudo. Ou seja: o sangue pode ser transmutado, alquimicamente, em luz. Ou pelo menos em ótima literatura.

Sem publicar há seis anos, desde o excelente romance As Horas Nuas - uma espécie de turning point na obra da autora, como A Hora da Estrela na obra de Clarice Lispector - A Noite Escura e Mais Eu, (belo título, de um poema de Cecília Meireles usado na epígrafe) entre todos os livros de contos de Lygia talvez seja a sua obra-prima. Pela unidade, pela densidade, pela extraordinária dignidade que confere à língua portuguesa, mesmo quando trata de temas ou situações sórdidas, perversas, violentas. Ler Lygia Fagundes Telles, para quem é dado a esses requintes, traz o prazer da descoberta da beleza, sonoridade e expressividade da nossa língua. Não que seja uma estilista afetada, retórica e vazia, como às vezes costuma ser a “literatura feminina” (vide as Patrícia Bins da vida…), e isso por uma razão muito simples: Lygia é basicamente uma contadora de histórias, no melhor e mais vasto significado da expressão. Histórias encantatórias, como as de As Mil e Uma Noites, ou as das babás e tias de antigamente.

Acontece que estas histórias, como observou José Paulo Paes recentemente em O Estado de São Paulo, não se esgotam no enredo. Terminadas de ler pela primeira vez, deixam a vontade de reler uma segunda ou terceira, por suas inúmeras camadas de significados e pela carga de mistério sempre deixada no ar. Às vezes, todo um conflito revela-se numa frase aparentemente perdida no meio do texto, num detalhe. Assim é, por exemplo, em Dolly (que espécie de relação houve entre a narradora e a ousada Dolly do título?); na perfeição de Você não Acha que Esfriou? (por que tanta crueldade no comportamento de Kori com o amante?) ou na ousadia do tema lésbisco de Uma Branca Sombra Pálida (foi a mãe narradora da história ou a suposta amante Gina a propulsora do suicídio de Oriana?). Reler nem sempre é esclarecer, e esclarecer nem sempre é necessário. Afinal, um equívoco pode durar uma vida inteira – como no extraordinário Papoulas sobre Feltro Negro, em que admiração e respeito à sensibilidade do outro são confundidos com ódio e desprezo. Mas seria isso mesmo? No final, a velha professora Elzira evita de todas as maneiras o olhar da ex-aluna. A verdade é ambígua e escapa o tempo todo, parece dizer Lygia nas entrelinhas de tudo que escreve, centrado nesse conflito para sempre irresolvido entre mucos, ódios, nojos da matéria orgânica desprezível e a possibilidade do espírito. Maior riqueza seria impossível num escritor, suspenso sobre o abismo do fio esticado das palavras, também elas ambíguas.

Com A Noite Escura e Mais Eu, Lygia Fagundes Telles encerra um ano farto para a literatura brasileira, ao lado do belíssimo Quase Memória, de Carlos Heitor Cony; de O Buraco na Parede, de Rubem Fonseca; de revelações surpreendentes, como Alberto Guzik no corajoso Risco de Vida ou a confirmação de talentos como Patrícia Mello (O Matador) e Bernardo Carvalho (Onze). E continua a ser, como a elegeu há anos Hélio Pólvora, a imbatível Primeira Dama da Literatura Brasileira, embora ela mesma não se importe com tais epítetos. Importa-se, sim, com o texto e a capacidade deste ajudar a desvendar mais camadas do enigma atávico da condição humana.

                              Zero Hora, Segundo Caderno, 6 janeiro de 1996

3 comentários:

  1. “Ela ficou mas a gota de sangue que pingou na minha luva, a gota de sangue veio comigo”... Seria Lygia falando por Caio? rs Parece texto dele. :)

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  2. Lygia é uma das divas da literatura brasileira! Sem dúvida!

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