sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mas que tempo é esse?



                                                      É preciso continuar atento
                                                      e forte: a neo caretice está
                                                      morando na casa ali do lado
Fui ver Atração Fatal, filme de Adrian Lyne (o mesmo daquele idiotíssimo Nove Semanas e Meia de Amor). Saí aterrorizado. Não com os sustos de thriller, que sou daqueles adoradores do Brian de Palma dos bons tempos: abro bem os olhos na hora do medo e raramente me choco. Desta vez, meu susto foi porque poucas vezes vi um filme com uma ideologia tão canalha. Não sou aquele desmancha-prazeres que conta o filme para quem não viu, mas a moral (?) da história pode ser resumida em qualquer coisa como: “Para salvar a família, vale qualquer atitude, menos o assassinato”. Ou: “Quem vive um amor ilícito merece os piores castigos”. Ou ainda: “A salvação é daqueles que aceitarem a mediocridade bem-comportada”.
O filme é tão canalha, mas tão canalha que é também eficientíssimo. Tem um pique irresistível, envolve, quase impede o distanciamento crítico. Em nome dos “bons sentimentos”, do “equilíbrio”, da “decência”, da “saúde”, o espectador também começa a desejar que a pobre Alex (Glenn Close), a louca apaixonada, também se ferre. Não há aqui aquela ironia com as ridículas moralidades e normalidades estabelecidas, de Veludo Azul, de David Lynch, nem a delicada investigação dessa zona limite entre a paixão e a loucura, de A História de Adele H, de François Truffaut – dois filmes decentes. Atração Fatal é indecente e grosseiro. Não ficam claras as razões da psicose de Alex, é como se o diretor afirmasse que todas as mulheres independentes, que não escolheram casar para serem mães e esposas amantíssimas, fossem monstros de ressentimento, amargura, frustração e – como se não bastasse – assassinas em potencial. Perigosíssima à sagrada família, essas mulheres liberadas e apaixonadas que matam coelhinhos, sequestram menininhas inocentes e, completamente piradas, saem armadas de faca pelas ruas. Tubarão perde.
Saí do cinema pensando: é preciso estar atento e forte, colega, a idade Média está de volta. Discretamente, todo dia, de muitas formas estamos sendo bombardeados por mensagens tipo: não saia da linha, não cometa nenhuma transgressão, não se apaixone. Caso contrário, você será punido por isso. O vírus da Aids materializou nas cabeças burras aquela velha suspeita de que toda a nudez, um dia, seria inevitavelmente castigada. O que confirma a culposa lenga-lenga judaico-cristã de que este planeta não passa mesmo de um sofrido vale de lágrimas, onde todo prazer é sinônimo pecado. Para quem acompanhou a luta das minorias nos anos 60 e 70, resta um espanto no ar: o que está acontecendo? É um retrocesso? Foi tudo inútil? Como se entrássemos coletivamente numa máquina do tempo moral e mental, para negar a História e ignorar todos aqueles vislumbres de felicidade individual conquistados nas últimas décadas, Tentar ser feliz agora, saindo fora do esquema, é crime. Homossexuais, mulheres independentes, homens descasados, rebeldes de todo tipo, artistas, loucos mansos e varridos: a nova moral está no seu encalço.
A neocaretice está solta pelas ruas. Ela mora no apartamento ao lado, na casa da esquina e anda muito preocupada com a possibilidade de Jocasta e Édipo consumarem seu colorido incesto às oito da noite. Ela quer que o sexo que não se destine exclusivamente à procriação seja varrido da face da Terra. Ela sorri amável no elevador, dá bons-dias, boas-tardes, boas-noites, depois fica prestando atenção na sua vida para ver se você está andando direitinho dentro da linha. E se não estiver, tome cuidado, porque de alguma forma você pode ser punido. Despejo, desemprego – você sabe, essas pequenas tragédias que acontecem com quem ainda é capaz de não só acreditar em um pouco de prazer, mas até de lutar por isso. Embora, concordo, ninguém saiba mais direito o que seria “o prazer” a estas alturas da década de 80.
Quanto a nós, meio gauches, meio bandidos, dinossauros sobreviventes daquele tempo em que tudo parecia que ia mudar – não resta muito mais a fazer senão resistir. Movidos, no mínimo, pela curiosidade de onde vai dar tudo isso. E sempre se pode cantarolar baixinho aquele velho blues (Milagres) de Cazuza, que diz assim: “Mas que tempo mais vagabundo é esse que escolheram pra gente viver?”.
                    OESP – Caderno 2 – 20 janeiro de 1988


2 comentários:

  1. MATOU A PAU!!!! VIREI SUA FÃ!!!!!!!

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  2. O mais chocante é que esse texto é de 88! A neocaretice só ganhou força desde então. Mas parece que as pessoas estão acordando, sinto que estão começando a erguer a voz e sair às ruas... espero que não seja só impressão minha. E, mais ainda, espero que o povo persista e não seja calado.

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