terça-feira, 14 de junho de 2011

À nossa mais completa tradução


Partir é bom, voltar é melhor. Partir é de avião, mesmo não sendo. Você louco pra ver pelas costas o que fica: mulher, amigo, trabalho, cidade, picuinha cotidiana. Voltar é de trem, mesmo não sendo também. E você louco pra ver crescer devagar, na curva do monte, a cara desse pão nosso de cada dia. Pela frente. Voltar é de frente, partir de costas. Ficar eu não sei. Talvez de perfil, assim um tanto egípcio?      
Mesmo de avião, voltei de trem. Cinco anos longe deste Caderno 2, 10 meses fora de sampa. Até que posso, mas não quero viver sem. Voltando ressabiado, reticente e escaldado, dei de cara com Ela – de quem Caetano uma vez disse, e tudo que ele diz eu fico atento, ser a nossa mais perfeita tradução. Bracejando no mar de adrenalina da Paulista, comprei o disco de Rita Lee. E meu velho sangue roqueiro de dinossauro pop tornou a ferver. A velha senhora indigna, dessa geração que descobriu um poço de desejos debaixo do travesseiro no Reino das Águas Claras, continua com seu humor diabolicamente inteligente. Wow!
Não posso viver sem Sampa, não posso viver sem Rita. Nem sequer, najas queridas e já a postos, nos conhecemos direito.  Fora do palco-platéia só nos vimos uma vez, na casa de Vânia Toledo, logo depois que eu a defendera aqui mesmo de certo, digamos, Notório Jovem Crítico de Maus Bofes.  Ele a acusara de estar na “menopausa (sic!) criativa”. Estavas, perguntaram? Rita já rolou (e eu? E eu?) por todo o tobogã do baixo-astral tupiniquim – um dia deusa, noutro cadela – e sempre foi melhor que tudo que disseram, inclusive os elogios.
Rita e São Paulo. Pauleira, barulheira, gritaria: high-speed. E sem que ninguém espere, um interior bossa-nova, de luz baixa e som mansinho. Oh paulistanos de nervos repuxados como a cara das atrizes que se recusam a envelhecer, ouçam Rita Lee. Ela nos ensina o jeito de lidar com esta cidade onde você às vezes vegeta, às vezes é canibal. Audaciosa, perniciosa, tinhosa e hórrorosa como a Drag Queen de Antônio Bivar; necessitada de mais tempo, dinheiro e amor para matar o dragão; erótica e violentamente zen na sabedoria que só pterodáctilos feito ela (e eu? e eu?) estão cansados de saber que “nada tem fim, as coisas só se transformam”, mãe de família filósofa desbundada sobrevivente mutante: preciso de Rita como preciso desta cidade. Espelhos, paradisíaco inferno, refletindo meu avesso.
Tenho razões, ora, se não. Sozinho feito uma Laika, já ouvo Rita no walk-man, 17 abaixo de zero, neve batendo na cara, entre os junkies de Camden Town. Já ouvi Rita num TGV a mil por hora – eu ia ser feliz, não tinha tempo a perder. Já ouvi Rita de porre, fazendo amor, picando cenoura, pedindo carona, de saia-justa, deprê e piradão. Todas as vezes, me senti até o resto dos cabelos que me restam me restam metido nesta “coisa” paulistana: metrópole Gremlim distendendo seus tentáculos de neón e cólera em direção ao Terceiro Milênio. Identidade, Rita nos dá.
Me arrepio quando a ouço receber a Brigitte Bardot  anos 60, quando o Brasil era chique, cantando Maria Ninguém. Me arrepio mais quando a ouço berrar feito doida homenageando Todas as Mulheres do Mundo. E ainda mais quando cita Lonita Renaux (Denise Barroso) – aquela que, segundo Telmo Martino, interceptava todos os drinques. Nos tempos da Gang 90. Todos morreram, menos nós. Pós-absurdetes, sobreviventes, Bebetes Indartes da esquina, segurai bem alto nosso nobre facho (já) histórico.
Quando penso que voltei e que isso é bom, eu penso em Rita Lee. Quero cantar São Paulo, quero cantar nosso tempo.  Mais fundo e mais simples, quero cantar e mais nada. Cinquentões adolescentes ganhando no braço do baixo-astral do Brasil, se nossa “menopausa” (sic!) criativa” for assim, welcome seja! Para sempre teu, eternamente F.
                              OESP – Caderno 2 – Domingo, 22 de agosto de 1993

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