Fachada do Edif. Canopus, o último apartamento de Caio F. em SP |
As cenas abaixo narradas foram testemunhadas pelo
jornalista e escritor Caio Fernando Abreu, no dia 6 de abril de 1989, na rua
Haddock Lobo, exatamente em frente ao edifício Canopus, nº 959
20h – Quinta-feira normal. Vou chegando em casa, começo a
subir a Haddock Lobo, da Alameda Franca até a Itú. Na porta de meu prédio, um
movimento estranho. Um fio de sangue desce a ladeira. Acompanho, chego mais
perto e vejo: na sarjeta, o cadáver de um homem semi coberto por folhas de
jornal. Um carro de polícia, gente parada. Pergunto ao porteiro o que foi. Com
ar de desprezo, ele conta: “Um ladrão. A polícia deu uns tiros”. Que horror, eu
digo. Ou só penso. O porteiro: “Um bandido a mais, um a menos, que diferença
faz, seu Caio?”
20h10m – Subindo pelo elevador, vou pensando pois é, que
diferença faz? Entro no apartamento. Meu amigo Luciano viu tudo de sua janela.
Às seis da tarde dois homens desceram a rua correndo, provavelmente depois de
um assalto. A polícia desceu atrás, atirando. Um dos homens entrou num táxi
parado, encostou o revólver na cabeça do motorista e conseguiu fugir. O outro
levou os tiros nas costas. Ficou lá, de bruços, estendido no chão. Foi às seis
horas. Agora são mais de oito.
20h30m – Tento trabalhar, não consigo. Tento comer, não
desce. Tento ver TV, não entendo o que vejo. Tento ouvir Mozart, soa falso.
Ligo para alguém, não atende. Espio pela janela, moro no segundo andar. O morto
continua lá. Colocaram uma dessas sinalizações de madeira no meio da rua, para
desviar os carros. As senhoras chiques dos edifícios vizinhos entram em casa de
saia mais justa do que de costume. Desviam os olhos, a morte é feia. E não tem
griffe.
21h – Percebo que acabei de ler cinco vezes a mesma frase
de Sol Negro, de Julia Kristeva, sem entender uma palavra. Espio pela janela. O
cara continua lá. Mortíssimo, por fora do jornal dois pés de tênis. Carros
param, buzinam, rádios ligados muito alto. Há uma espécie de festa em volta do
morto. Lembro de João Bosco, lembra? “Tá lá o corpo estendido no chão/ em vez
de vela uma foto de um gol". Nem isso, não há nada em volta dele. Curiosos,
risinhos.
22h – Continuo pirando. Me bato pela casa falando alto
porra, mas esse cara deve ter uma mãe, e uma mulher, um filho, uma tia, um
vizinho que seja. Ninguém sabe da morte dele. E nem uma vela ilumina sua morte
pobre. Lembro de Elis cantando Onze Fitas, de Fátima Guedes: “Por engano,
desgosto ou cortesia/ tava lá morto e posto o desregrado”. Me sinto sujo.
23h – Tomo banho. Não relaxo, nem me sinto mais limpo.
Pelo menos uma vela, uma só. Não consigo me controlar. Desço com um pacote de
velas na mão. Uma maçada em volta do corpo, fazendo piadinhas. Tento acender a
vela, o vento sopra, apaga. Torno a acender, torna a apagar. Um cara pergunta: “Era
seu parente?” De certa forma, não digo. O policial me pede para sair, to criando
confusão. Deixo o pacote aos pés do defunto. Vale a intenção. Vale? Tô pirando.
24h – Já pirei. Dou um salto da cama, abro a janela,
começo a gritar: “Assassinos! Isso é crime” Urubus! Gentalha!” A polícia olha
para cima. Bato a janela com força. A polícia chama pelo porteiro interno,
querem me levar por desacato à autoridade. Luciano segura, desdobra, convence.
01h – O corpo continua lá. Param mais dois carros. Desce
um fotógrafo, arrancam os jornais de cima do corpo, rasgam a roupa dele. Jovem,
não deve (devia) ter 30 anos. Já está rígido. Fotografam em vários ângulos,
completamente nu. Desamparado. Mais carros param. Festa nos Jardins. “Onze
tiros fizeram a avaria/ e o morto já tava conformado”.
02h – Para um camburão, tiram uma caixa comprida de
plástico. Enfiam o homem lá dentro. Da janela, espio. Dentro do camburão há
pelo menos mais três caixas. Cheias. De caras mortos, como ele. Quem eram?
02h30m – Um policial recolhe os jornais, a mortalha.
Outro, com uma mangueira, limpa com jatos d’àgua as marcas de sangue. Não fica
nenhum sinal.
Nos dois ou três dias seguintes, compro todos os jornais
da cidade. Não sai nenhuma notícia. Continuo a ouvir Elis: “Essa história
contada assim por cima/ a verdade não rima, a verdade não rima”. Pois é, a
verdade. O quê?
Revista AZ – maio 1989
Essas duas gravações da Elis,mais o texto,nossa,chega doer de tão lindo.
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