quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

James Cain bate à sua porta


Eu nunca tinha lido James M. Cain. Nas primeiras 20 páginas comecei a entender por que, na apresentação, Ruy Castro avisa que se alguém pegar a gente com o livro na mão pode perguntar “para que perder tempo com uma literatura tão vagabunda”. É que O Destino Bate à Porta não tem nenhuma pretensão gritante à grande obra – ele é absolutamente compreensível por qualquer pessoa. É um livro simples.

Isso na aparência. Porque é como se o autor Cain assumisse a linguagem e os pontos de vista da personagem Frank Chambers. E Frank é um cara “simples”: vagabundeia de cidade em cidade, pega caronas, desce aqui e ali, joga uma sinuca, ganha uma grana, cai de novo para a estrada. Ele nem sabe bem por que vai parar no posto de gasolina do grego Nick Papadakis. Nem como chega a se envolver com a mulher de Nick, Cora. Muito menos chega a perceber o momento em que essa relação começa a se tornar terrível.

Ed. Brasiliense (1984)
O que me desnorteia um pouco no livro é que é uma história de amor. Mas daquele amor sobre o qual Frank fala, quase no final, assim: “Mas o amor quando está misturado com medo, não é mais amor. É ódio”. Essa nuance é perturbadora: primeiro cúmplices e impunes num crime, Frank e Cora vão se tornando inimigos, cheios de paranóia em relação um ao outro. Quem vai dedar quem primeiro? A suspeita – e o ódio – nascem do poder absoluto que a cumplicidade dá a um sobre o outro. Quando os dois conseguem, naquele simbólico banho de mar, livrar-se das suspeitas, vem a chamada “mão do destino” e faz Frank, que não pagou pelo crime anterior, que realmente tinha cometido, pagar por um segundo crime – que não cometeu. E fica tudo zero a zero nas contas com o destino?

Mas é então que Cain introduz elementos mais perturbadores na história: Frank fica em dúvida – seria ele conscientemente inocente do segundo crime mas inconscientemente culpado? E é então que a gente fica também perturbado: quem responde pelos nossos atos sub ou inconscientes é, inevitavelmente, a nossa parte consciente. Que, se desconhecer suas motivações mais profundas ou escondidas, será para sempre inocente. Como é que alguém pode ser culpado de um crime que nem sequer sabe que cometeu?

 John Garfield e Lana Turner:
O Destino Bate à sua Porta (1948)
Nesse momento, o que parecia extremamente simples no livro de Cain vai ficando muito complicado. Porque além de uma história de amor, torna-se também uma história psicológica muito densa sobre a loucura. Sobre a dissociação entre consciente e inconsciente, sobre esquizofrenia, sobre divisão de personalidade. Também sobre magia: é estranho que um gato interfira no momento do primeiro crime, e estranho que um gato (mas não um gato comum: um puma) venha a participar de alguma forma do segundo. É estranhíssimo que antes de Nick levar a porrada na cabeça, da segunda vez, tenha soltado um agudo que o eco responde depois que ele está praticamente morto. Como se, mesmo depois de morto, o que foi vivo continuasse de alguma forma tendo reflexos no real.


Jack Nicholson e Jessica Lange:
O Destino Bate à Sua Porta (1981)
Aí você começa a compreender por que Ruy Castro chama Cain de “o Dostoievski americano”. E se pensar mais um pouco, pode associá-lo também a Albert Camus de O Estrangeiro. Raskolnikoff, em Crime e Castigo, não chega a saber ao certo por que mata a velha. Como a personagem de Camus, que à pergunta da razão que o levou a matar o árabe, responde candidamente que “foi por causa do sol”. No livro de Cain, depois de matar Nick, Frank confessa que gostava dele – e chega a levar flores no enterro, para jogar sobre o caixão, e chora comovido. Talvez se mate, fora da gente, aquilo que gostaríamos de matar dentro de nós mesmos?




Obsessão, de Luchino Visconti (1943)
Aí você começa a 
compreender por que já fizeram três ou quatro filmes desse livro – um deles, inclusive, dirigido pelo grande Visconti. E vai entender por que quando alguém se referir a essa literatura “vagabunda”, como diz o Ruy Castro, a melhor resposta é dar de ombros e rir por dentro. E se pensar que Cain, na época que escreveu o livro – 1934 -, tinha 45 anos de muitas andanças pelo mundo do jornalismo e até da Primeira Guerra Mundial, vai começar a suspeitar que esse cara realmente sabia das coisas. Tanto que O Destino Bate à Porta, como o eco do canto de Nick, antes de morrer, continua a soar – 50 anos depois.

                                  Primeiro Toque (Informativo da Ed. Brasiliense) - 1984

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