quinta-feira, 1 de março de 2012

Processo de Criação - Parte 1




A entrevista abaixo do Caio Fernando de Abreu foi publicada no livro 
 Processo de Criação, de Darlene Dalto (Editora Marco Zero, 1993). 
E a autora apresenta Caio F. Assim:

“Caio é o mais bem acabado estereótipo de escritor que já encontrei. Escreve com luz baixa, máquina de escrever, uma bebida, cigarros.. Cena de filme noir. Fui encontrá-lo em junho de 92. Comecei a gostar do seu trabalho quando ele publicou Morangos Mofados, depois Onde Andará Dulce Veiga? Eu o conheci no Caderno 2 de O Estado de São Paulo, trabalhamos lá. Caio não suportava ficar seis, sete horas direto na redação. Tinha mais o que fazer.”


Quando você percebeu que podia criar? 
É uma coisa muito antiga. Minha mãe, minhas tias dizem que desde os três, quatro anos, em vez de me contarem histórias, eu é que contava histórias para elas.


Que tipo de história?
Não lembro direito, mas sempre tinha muita viagem no meio. Minha mãe era professora, aprendi a ler muito cedo e já saí direto escrevendo histórias, desenhando. Meu pai gostava muito de ler, tinha uma biblioteca enorme e eu também lia de tudo, alguns livros escondidos, como Um Lugar ao Sol e Caminhos Cruzados, do Érico Veríssimo. A Carne, do Julio Ribeiro, O Cortiço, do Aluizio de Azevedo. Eu lia no quarto, depois que todo mundo ia dormir, deixava o livro aberto debaixo do colchão. Acho que era uma coisa meio consentida.


As histórias que você contava tinham a ver com os livros que lia?
Às vezes sim, eram histórias muito angustiadas. Aos 11 anos escrevi um romance, a história de uma mãe solteira, que se passava nas montanhas escarpas dos Pirineus. (risos). Eu tinha paixão pela França.


Você não brincava com os seus irmãos?
Nós somos cinco irmãos, sou o mais velho. Mas tive uma infância e, principalmente, uma adolescência muito solitárias. Nunca fui muito criança, era uma pessoa mais contemplativa, interiorizada. Achava tudo muito tolo, aliás, acho até hoje. (risos). Com seis, sete anos já tinha angústias metafísicas. Às vezes eu ficava em um campo que tinha do lado de casa rodando com os braços abertos até ficar completamente tonto e cair no chão. E enquanto eu rodava, ficava repetindo: “Eu sou eu, mas quem sou eu? Eu sou eu, mas quem sou eu?”. Quando caía, olhava para o céu, que estava rodando também, e dizia: “Eu sou eu mas o céu é muito maior”. As minhas carências eram metafísicas. Eu tinha uma profunda necessidade de Deus.


Quando você decidiu ser escritor?
Eu sempre dizia que queria ser escritor. Era muito sereno isso dentro de mim.

Você guardava o que escrevia?
Esse romance de que falei tenho guardado aí em uma pasta, chama-se A Maldição do Saint Marie.

Você também escrevia poesias?
Sempre. É um vício secreto. Pouquíssimas pessoas viram. Ela não é boa, não.

Fale do clima mais propício para você escrever naquela época?
À noite no meu quarto, às vezes durante as aulas chatas, matemática, física, química. Eu desenhava muito também.


Você continua preferindo escrever à noite?
Eu gosto muito de luz baixa, sempre naquela mesa ali, na qual trabalho, em geral, de madrugada. Gosto de sentar para escrever nove, 10 da noite e aí pode ir até cinco, seis da manhã.


Tem música, fumaça?
Tem muito cigarro, conhaque. Acho que é uma grande mistura para escrever. Dizem que Castro Alves bebia muito conhaque. Mas escrever exige muito que você esteja com a cabeça limpa. Depois quando já conseguiu segurar o texto, aí sim dá para beber uma coisinha. O bom é café e cigarro, direto. Eu gosto muito de música e tem certos textos que têm um clima musical, de blues, um clima de chorinho. Aí é bom colocar antes de escrever. Para escrever, silêncio. Aliás, eu sou apaixonado pelo silêncio.




Você escolhe a música de acordo com a cena, não com seu estado de humor?Isso. 

Exemplos.
Em Onde Andará Dulce Veiga? tem um momento que um repórter vai fazer uma entrevista com uma cantora de rock e quando ele sai do quarto onde a entrevistou ela coloca um rock. Eu não sabia direito que rock era aquele. Aí, me veio de repente – era Walk on the Wild Side, do Lou Reed, que era também um toque que ela estava dando porque o repórter era muito careta. Escrevi esse capítulo ouvindo e ouvindo de novo Lou Reed porque eu queria cronometrar a caminhada do personagem. Era um sobradinho na Freguesia do Ó, ele ia descendo as escadas ouvindo um ou outro verso da música.

Você escreve direto, sem interrupções?
Ultimamente estou com um problema de escritor, problema de coluna. Então tenho que dar umas paradas porque dói muito, eu deito no chão, faço ioga. Às vezes tenho que fazer um esforço para comer alguma coisa porque fico sem fome. Ultimamente tenho medo de escrever. Fico muito excitado, sem apetite, dá náuseas, vertigens, taquicardia.


Quando é que Santiago ficou pequena e você sentiu vontade de cair fora?
Meus pais queriam que eu fizesse medicina ou direito e resolveram que eu devia fazer o colegial em Porto Alegre. Fui e encontrei na escola uma boa biblioteca. Caí de boca nos livros, também escrevi muito lá. Nesse colégio aconteceu uma coisa que determinou a minha vida. Eu costumava ler a revista Claudia, adorava os artigos da Carmen da Silva, que foi a grande precursora do feminismo aqui no Brasil. Aí mandei um conto para a Carmen chamado Príncipe Sapo, a história de uma solteirona, Teresa, que se apaixona por um professor de piano que parecia um sapo. Passou-se um ano sem resposta até que em novembro de 1966 chegou pelo correio um pacote grande, com uma revista Claudia, com o conto publicado e uma carta da Carmen dizendo que ela queria me fazer uma surpresa. Eu tinha 17 anos, foi a primeira vez que publiquei.



Para quem você mostrava suas histórias?
Os meus temas desde muito cedo foram meio pesados, a dificuldade de amar, solidão, incomunicabilidade. Antes desse conto publicado na Claudia, troquei umas cartas com o Érico Veríssimo, ele me estimulava muito. Eu me imaginava um ET, que não tinha nenhuma pessoa parecida no mundo, me sentia muito diferente dos outros, as minhas idéias eram outras, eles queriam carros, jeans, namoradas. Isso só foi mudar quando entrei na faculdade.



Se até então era um processo solitário, como você sabia que o texto estava pronto, acabado?
Eu não sabia, achava que havia algo errado comigo. (risos). Tanto que depois caí na psicanálise e fiquei 13 anos. Quer dizer, acho que há algo “errado” com uma pessoa que cria. É alguém que não está satisfeito com a realidade objetiva como ela se apresenta e precisa recriá-la para poder viver, para suportar o real.


Os artistas são pessoas essencialmente carentes?
Com certeza. Acho que nos atores de teatro isso é mais nítido, são frágeis. Você no fundo escreve, pinta ou dança para ser amado, ser aceito.


Um artista definitivamente não se basta?
Acho que não.

Que estado emocional o impelia a escrever?
De certa forma eu estava sempre escrevendo. A partir dos onze, doze anos, sempre tive diários, tenho pilhas de cadernos até hoje, tinha esse contato diário com a palavra. E de vez em quando me brotavam histórias que não eram divagações pessoais, eram ficção mesmo. Essa história da solidão, acho que em momentos em que isso pesava mais eu escrevia com mais intensidade.


E quando você estava contente?
Não. Acho que a alegria é estéril no sentido de que se basta.

                                   PS: Logo logo a segunda parte da entrevista

Um comentário:

  1. Muito bom poder ler mais sobre o Caio. São coisas que eu não sabia sobre ele! É como se fosse coisas inéditas. Ele vai estar imortal nos nossos corações!

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