Depois de ler estas histórias de Carson
McCullers, dificilmente alguém com um mínimo de bom gosto literário poderá
dizer que o conto é um gênero maior. Concentradas em suas frases breves, estas
peças perseguem – e sempre encontram – aquela característica básica das
histórias curtas: um mínimo de palavras, um máximo de intensidade. São
construídas de sugestões, reflexos, ambiguidades – para que o leitor complete
com sua imaginação aquilo que, no texto, é somente insinuado. Preenchidos os
brancos, irrompe o que deveria ser a alma de todo bom conto: a epifania.
Delicada aquarelista de uma linguagem feita
de semitons, Carson McCullers publicou este livro em 1951, com apenas 34 anos.
Depois de três anos, com outros três livros publicados, estava com o lado
esquerdo do corpo paralisado. Até sua morte, em 1967, com 50 anos de idade,
usou apenas um dos dedos para escrever à máquina, coisa que só conseguia fazer
deitada e com terríveis dores. Quem sabe daí – do ato de criação
indissoluvelmente ligado à dor física – ela tirou seu extraordinário poder de
compreensão para com as deformidades humanas.
Como noutro escritor americano, John Fante,
seu aparentado literário pela ternura – cego no final da vida, com pernas e
braços amputados devido a diabetes -, Carson McCullers conquistou em sua obra,
composta por cinco livros de ficção e uma peça teatral, aquilo que se poderia
chamar de “uma grandeza modesta”. Como Fante, não revolucionou profundamente a
linguagem nem traçou vastos painéis, à maneira de outros conterrâneos e
contemporâneos seus, como William Faulkner ou Ernest Hemingway (estes, sim,
considerados “grandes”, e sem nenhuma modéstia). Talvez não tenha tido tempo
suficiente para isso, Sua vida, como sua obra, foi curta.
Filha de um modesto relojoeiro, Carson
McCullers nasceu em 1917 em Columbus, Geórgia, sul dos Estados Unidos, uma
região até hoje racista e atrasada. As vivências da infância foram o material
de seu primeiro romance, The Heart Is a Lonely Hunter (O Coração é um Caçador
Solitário, 1940), onde ela retrata a si mesma na figura da adolescente Mick
Kelly. Começara a escrevê-lo muito cedo, antes de mudar para Nova York, aos 18
anos, para continuar os estudos de piano. O piano, aliás uma de suas obsessões,
volta a aparecer em uma história deste livro – “Wunderkind”, em que uma
adolescente confronta-se ao mesmo tempo com as primeiras frustrações e vagos
impulsos eróticos.
Adolescentes desajustados – um pouco como em
J.D. Salinger –, homens solitários (“O Transeunte”, alcóolatras (“Um Dilema
Doméstico”), neuróticos de toda espécie (“O Jóquei” e “Madame Zilenski”),
bandidos, aleijados e mal-amados (“A Balada...”) são algumas de suas
personagens mais constantes. Sem julgamentos nem proselitismos, mas
solidariamente, a ficção de Carson McCullers sempre se colocou ao lado das
minorias. Temas e personagens que pareciam grotescos demais em outros autores –
como a rude e gigantesca srta. Amélia, apaixonada pelo corcunda Lymon, na
história-título do livro –, filtrados pela prosa musical desta escritora, não
apenas soam verossímeis mas, o que é mais mágico e inesperado, de alguma forma
assemelham-se a nós mesmos. Tratados com extrema doçura, por mais “anormais” ou
bizarras que sejam suas personagens, essa empatia jamais é ofensiva ou
incômoda. Ao contrário, de certa forma nos sentimos lisonjeados com sua
inocente humanidade, enquanto a autora acarinha a nós e a suas pobres craturas
com uma linguagem cheia de perdão.
Como em John Fante ou J.D. Salinger, nessa
suave cumplicidade com o que poderia ser sórdido ou feio, mas no texto encantado de Carson McCullers
resulta sempre poético, talvez esteja sua maior qualidade. São os pecados
(perdoados) de todos nós – a propósito, título em português do filme de John
Huston adaptado de seu romance Reflection in a Golden Eye. Feito o velho bêbado
do conto quase budista que encerra este livro, em sua vida dura – que incluiu o
suicídio do marido James Reaves McCullers, em 1953 – a pequena e frágil Carson
também parece ter aprendido a amar, mesmo sem resposta, a todas as coisas: uma
árvore, um rochedo, uma nuvem.
Equivocadamente considerada por muitos
críticos metidos (e frios) como “uma autora menor”, Carson McCullers recebeu no
entanto significativas homenagens de figuras importantes. Depois de Ler The
Member of The Wedding, o dramaturgo Tennessee Williams tornou-se seu melhor
amigo e declarou no prefácio de Reflections: “...nela, o sentimento de espanto
transformou-se naquele sentimento de terror que é a desesperada e negra raiz de
tudo o que é significativo na arte moderna, da Guernica de Picasso às
caricaturas de Charles Adams”. E Graham Greene escreveu: “A srta. McCullers e
talvez o sr. Faulkner são os únicos escritores depois de D.H. Lawrence com uma
sensibilidade poética original. Eu prefiro a srta. McCullers ao sr. Faulkner,
porque ela escreve com mais clareza, e prefiro ela a D.H. Lawrence porque ela
não tem mensagem”.
É verdade. Fotos antigas mostram uma quase
menina de cabelos muito lisos e pretos, olhos grandes espantados sob a franja.
Os lábios apertados parecem conter qualquer comentário sobre a vida. Não
julgam, apenas compreendem e lamentam. Talvez fosse isso o que Graham Greene
queria dizer ao referir-se à falta de “mensagem”. Carson McCullers não usou a
literatura como arma para tentar melhorar o mundo, mas sem dúvida o melhorava
muito apenas escrevendo, cheia de perdão pelas monstruosidades que nele
habitam. Um perdão bem humorado, como aquela “serena surpresa” que o sr. Book
de “Madame Zilensky e o Rei da Finlândia” sente, no final, ao ver o cão
Airedale andando de costas....
Traduzir Carson McCullers foi, para mim, como
um exercício de reconciliação com o humano torto e carente de cada um de nós.
Acredito que lê-la também o será.
Nota do tradutor no livro A Balada do Café Triste - Agosto de 1991
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