quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Carlos chega ao céu


                                             
                                               E, olhando aquele nuvenzal
                                               todo, comenta: “Gente, não é
                                               que virei mesmo eterno?”

Lá no céu, Cecília Meireles acorda cedinho. Mais cedo ainda do que de costume, que ela gosta de espiar os querubins tontinhos de sono. Mas hoje é dia especial. Cecília prende os cabelos, depois toma sua homeopatia (será Dulcamara? Daqui não dá pra ver – pode até ser Stramonium) e lava devagar o rosto na água do arco-íris. Bebe seu chazinho de pétalas de rosa branca – amarela não, que dá azia. Escova devagar as asas, pluma por pluma. Só depois de bem bonita é que bate de leve na porta da nuvem ao lado. Dentro, um resmungo mal-humorado.

É Vinicius de Moraes, que virou a noite com o arcanjo Gabriel, conhecendo as bocas da zona da Ursa Maior, aquela louca pirada. Mesmo de ressaca, o poetinha acorda. “È hoje”- sussurra Cecíliam na janela que Vinicius abre, ainda de pijama, as asas desgrenhadas, um bafo de estrelas cadentes que Cecília até disfarça, vira o rosto. Vinícius se espreguiça: Ô, xará, não é que é mesmo hoje?”. E vai correndo se aprontar.

De braços dados, os dois vão bater à porta da nuvem de Manuel Bandeira. Mas nem era preciso. Manuel já está aceso, debruçado na janela, o nariz um pouco vermelho, fungando e tomando o café quente que Irene acabou de preparar. “È hoje” – dizem Cecília e Vinicius. Manuel funga: “E eu não sei, gente? Daqui a pouquinho”. Os três ficam em silêncio, o coração deles começa a bater no mesmo compasso (dodecassílabo? daqui não dá pra ouvir direito). Então eles olham para baixo, em direção ao planeta Terra, que gira e gira, meio bobo de tão azul.

Aí uma nuvem dourada lá embaixo começa a ficar cada vez mais dourada, a chegar cada vez mais perto. Brilha tanto que os três quase se assustam, até reconhecerem São Pedro na direção. Que pena, não dá mais tempo de chamar Pedro Nava. A nuvem aterrisa, São Pedro abre a porta. Um pouco encabulado, atrapalhado com as asas, cabeça baixa. Carlos Drummond de Andrade desce e põe os pés no céu. “Não é que virei mesmo eterno?” – comenta, olhando aquele nuvenzal todo. Então vê os três. Tanto tempo, pois é, tanto tempo, pensei que nem vinha mais. Cecília, você não mudou nada, e essa barriga, Poetinha? não toma jeito, curou a tosse, Bandeira? tá mais magro, Carlos, e a Dolores? Vai bem, mandou lembrança, qualquer dia chega por aqui. Irene traz mais café, bem preto, bem forte. Vinicius dá um jeitinho de virar no café uma talagada de uísque da garrafinha que carrega sempre, disfarçada sobre a asa esquerda. Os quatro brindam, olhos molhados de saudade satisfeita.

Depois olham pro mundo aqui de baixo, que gira e gira, todo azul, assim de longe, e esperam um pouquinho, enquanto bebem o café, até conseguem localizar, entre as nuvens, a América do Sul. Custa um pouco para encontrarem, quase no extremo sul dessa América, um pontinho luminoso chamado Porto Alegre e, bem no centro do coração dessa cidade, um velhinho de cara sapeca, parado em frente a um porta-retratos com a foto de Bruna Lombardi. É o Mário Quintana – eles sabem -, ou será o Anjo Malaquias (isso nunca ninguém soube)?. Cecília, Vinícius, Manuel e Carlos sorriem mansinho, espiando Mário lá do céu, lá de cima.

Mas à terra – tão azul assim, vista de longe, vista de cima – eles olham com pena. Sabem que pelo menos metade deste azul todo, depois que eles se foram, brota dali, do quartinho do Mário. Aí suspiram, tadinho, que barra! Um anjo torto vem pedir autógrafo de Carlos. “Desguia” – avisa Vinícius. – “Um chato, maior aluguel.” Carlos pergunta de Maria Julieta. Manuel diz que leva ele até lá. Cecília tem um almoço com Clarice e Ana Cristina. Vinícius não sabe se dorme mais um pouco ou se pega o Leon Eliachar para irem até a cada da Elis – será que já acordou, a diaba? -, tá com samba novo na cabeça, precisa cruzar com a Clementina.

Cá embaixo, no centro do coração gelado do pontinho luminoso chamado Porto Alegre, pleno agosto, Mario Quintana abre a janela, olha para cima e dá uma piscadinha.

Danados, pensa, que danadinhos. O dia parece tão cinzento que não resiste à tentação de escrever um poema. Bem curtinho, bem feliz. Entre lá e cá, girando e girando sem parar, feito louca. A Terra também não resiste. De puro gosto, fica ainda mais azul – você viu?
         
                                       OESP - Caderno 2, Quarta-feira, 26 de agosto de 1987



*O blog traz escritos de Caio Fernando Abreu inéditos em livros. Esse não é. Está no livro Pequenas Epifanias e posto aqui para comemorar: Hoje faz 110 anos que Carlos Drummond de Andrade nasceu e essa crônica é tão linda. Depois de um tempo longe das livrarias, Pequenas Epifanias foi relançado pela Editora Agir (capa ao lado). É uma seleção (organizada por Gil França Veloso) das crônicas que Caio F. escreveu no Caderno 2. É daqueles livros pra ter, ler e reler, sempre com o prazer das descobertas.



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