terça-feira, 16 de outubro de 2012

Eu quero biografar o humano do meu tempo


O autor falou de outos escritores e da produção literária em entrevista que nunca foi publicada


Kil Abreu

Em seus últimos anos, o escritor Caio Fernando de Abreu dizia estar em busca de um texto mais “solar”, mais aproximado da linguagem poética. Foi o que ele revelou nesta entrevista inédita, à época do lançamento do romance Onde Andará Dulce Veiga, em setembro de 1990.
Caio Fernando Abreu falou ainda dos autores que o influenciaram, sobre as condições da crítica e a atual produção literária brasileira.

Seus personagens estão sempre enrolados em uma temática urbana e atual. Como você avalia a preocupação do escritor com a contemporaneidade?
Penso no escritor sempre como fotógrafo do seu tempo, embora não tenha essa preocupação deliberada com a contemporaneidade do texto. Acho que qualquer preocupação em dirigir a obra para o contemporâneo é extra-literária. Por outro lado, sinto-me extremamente comprometido com as coisas que minha geração conheceu. Vivi os anos 50, o existencialismo, o movimento beatnik. Mas vivi também, graças a Deus, o movimento hippie, profunda e sonhadoramente. Então, no momento em que minha literatura tem uma marca forte de contracultura, é porque ela fatalmente está definida por essas experiências.

Alguns críticos identificaram em sua obra uma influência decisiva herdada de Clarice Lispector. Você assume tal influência?
Concordo, mas acho que essa análise é redutora. Sofri, sem dúvida, grande influência de Clarice Lispector, mas também de Érico Verissimo, Graciliano Ramos, Virginia Woolf e, mais recentemente, de John Fante. À maneira de Bob Dylan, minhas influências são todo o meu ato de estar vivo. Tudo que eu vi e vivi pelas estradas, todas as pessoas que cruzaram o meu caminho e, ainda, coisas como o jazz, a pintura de Van Gogh, a dança de Pina Bausch.

Em seus contos há sempre muitas citações que apontam para o misticismo. De onde vêm essas referências?
Certa vez pedi ao Paulo Coelho uma definição de magia, e ele respondeu dizendo que magia é o mistério. Acredito em Deus e em muitas formas do mistério. Sou astrólogo, embora não profissional, há 20 anos. Tenho uma curiosidade imensa de saber por que estou vivo, o que significa o céu, o que significa morrer. Portanto, é natural que em meu trabalho estejam presentes todas essas ânsias filosóficas exaltadas. Muitas vezes o que torna digna a vida de um homem é o fato de ele olhar para o céu e dizer: “Meu Deus, que coisa imensa...” E perguntar: Por que estou aqui?” Toda forma de criação artística é uma maneira de procurar essas respostas. Nesse sentido, minha literatura busca um caminho cada vez mais “solar”, o caminho da clareza, da concisão, da beleza. É vaidoso dizer isso, porque acho que a poesia é a linguagem mais nobre, mas eu gostaria que o meu trabalho se aproximasse da linguagem poética.

Com Morangos Mofados você assumiu um dos maiores sucessos editoriais da década de 80, a exemplo de outros escritores cujos livros permanecem entre os mais vendidos. Isso define uma valorização da literatura criada no Brasil?
Em geral, existe um grande preconceito contra o escritor brasileiro, que começa com o editor, passa pelo livreiro e chega inevitavelmente ao leitor. Uma outra coisa muito característica do Brasil é que o povo tem vergonha de ser brasileiro. Então, tudo aquilo que reflete sua face ele rejeita. Os suecos detestam o cinema de Bergman, que é a alma sueca. Aqui, o autor tem de se multifacetar e, para ver seu livro editado, tem de trabalhar muito. Acho que qualidade existe. Falta respeito pelo escritor.

A recorrência a determinado universo temático levou muitas pessoas a identificarem em seu trabalho as características que definiriam uma “escrita gay”. Você concorda com a existência dela?
Não existe literatura gay. A literatura ou é boa ou má literatura. Naturalmente que os escritores homossexuais têm algumas características, como as autoras mulheres. Mas considero toda essa discussão muito perigosa, porque é uma tentativa de colocar as coisas em prateleiras, para que elas não sejam perturbadoras. O meu trabalho é sobre a condição humana e absolutamente tudo cabe dentro da condição humana. Eu gostaria que uma pessoa, ao ler um livro meu, percebesse a dimensão disso, e não ficasse procurando classificações.

E a crítica, como se comporta em relação ao seu trabalho?
Como disse Oscar Wilde, quando os críticos divergem, o criador está de acordo consigo mesmo. Tenho experiências malucas em relação à crítica. Quando lancei Triângulo das Águas, por exemplo, no mesmo sábado saiu na Veja uma crítica demolindo o livro e na revista Isto É uma crítica dizendo que era o melhor livro brasileiro da década. O problema é que a crítica, principalmente a jornalística, é feita às vezes por pessoas incompletas. Isso a torna menor. A maioria dos bons críticos está no circuito universitário, como Luiz Costa Lima, Flora Sussekind, Silviano Santiago, Heloisa Buarque de Holanda.

Além dos contos, você também escreveu algumas peças para teatro. Como pensa a criação dramatúrgica?
Eu fui ator, em Porto Alegre, durante algum tempo. Então, tenho uma paixão antiga por teatro, mas atualmente não me sinto à vontade, acho chatíssimo. Não consigo ver nada, além de Antunes Filho e Gerald Thomas, que adoro. Muitas vezes parece que a forma teatral está um pouco gasta. Penso em um teatro simples, sem excessiva dramaticidade.

Em sua opinião, quem são os escritores brasileiros mais originais de nossa época?
Para mim, o mais importante, o mais original, o mais maluco e incendiado de todos é a Hilda Hilst. Eu nunca conheci uma escritora tão tomada pela paixão da palavra como a Hilda. Ela é bárbara. Gosto imensamente de João Ubaldo Ribeiro, Sergio Sant’Anna e Lya Luft, que escreve uns livros densos, misteriosos, uma espécie de gótico da realidade brasileira. Acho também que a poesia que se faz no Brasil, neste momento, conta com nomes da melhor qualidade, como Rubens Rodrigues Torres Filho, Armando Freitas Filho, Antonio de Francheschi. Vendo essa gente toda, às vezes me pergunto se escrever não é inútil, porque tenho a impressão de que não estou colaborando socialmente. Aí lembro de uma coisa que meu terapeuta falou, certa vez. Ele me disse que os escritores são biógrafos da emoção. E se daqui a 50 anos alguém quiser saber o que as pessoas sentiam nos anos 90 pode encontrar algumas respostas, talvez na literatura. Então, eu quero biografar o humano do meu tempo. Se conseguir fazer isso de uma forma que enobreça o homem, vou me sentir feliz, sereno. Acho que serenidade é uma coisa importante.

                                             OESP - Caderno 2, Terça-feira, 27 de agosto de 1996

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