sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Brizola por Caio F.


Em novembro de 1989, onze escritores foram convidados pelo Caderno Idéias do Jornal do Brasil para “traçar, com absoluta liberdade de estilo, o perfil dos onze principais candidatos à Presidência da República. E Caio Fernando de Abreu escreveu o de Leonel Brizola, Alguém escreve ao caudilho, abaixo.

                               Alguém escreve ao caudilho

                                “churrasco, bom chimarrão,
                                 fandango, trago e mulher:
                                é disso que o velho gosta,
                                é isso que o velho quer.”
                                   (Berenice Azambuja)



Bagaceira, exclamou sem exclamação, puro costume. Se fumasse, esmagaria a ponta do cigarro no bico da bota, que já tinha calçado uma. O pé esquerdo restava nu, um tanto patético com seus calos cada vez mais doloridos. Cinco minutos, pedira, pelo amor de Deus e não paravam de bater à porta, será que um vivente não tem um minuto de sossego nesta côsa, quase gritou. Aí lembrou da água para o mate, abriu uma fresta e pegou o termo sem ver a cara da mão que estendia a garrafa. Doutor, ouviu, o povo tá esperando. Pela vidraça abaixada, pelas cortinas fechadas vinham gritos e foguetes, como quando se tem dor de ouvido e através de algodões o som chega abafado, remoto. Encheu a cuia, cuspiu fora a água pelando de quente. O primeiro gole, lembra sempre, só para esquentar a bomba. Pulando no único pé calçado, afastou a cortina. Mas não viu a praça cheia, nem palanque nem povo.
Um campo plano espelhado sem fim, via, tão sem fim que se olhasse em volta teria o horizonte inteiro, como em alto mar, só que verde de capim, não de água, aqui e ali coberto com aquela plantinha amarela, flor de fedorenta, que brotava antes dos Finados, maria-mole diziam, ele ria, maria-mole era nome de doce noutros lugares, ou de china dessas bem rampeiras, girava o pescoço e via os trezentos e sessenta graus do pampa interrompidos vez por outra por uma capão de eucaliptos ou a superfície de vidro de algum açude, e de repente via também olhando mais atrás no tempo, não no espaço, sem querer mas via sempre e sempre com susto e revolta, embora nunca tivesse visto a cabeça degolada do pai, outra vez perguntou, como perguntava sempre: mas afinal o fio do facão cortou em cima ou em baixo do lenço maragato?

Quem sabe no meio, pensou pela primeira vez, que barbaridade. Largou a cortina, tentou enfiar o pé descalço na bota. O calo latejou tão forte que a mão tremeu e a cuia derramou um pouco da erva na bombacha, favo-de-mel do lado, bombacha de festa. Foi quando catava os toquinhos de madeira no linho do bolso que encontrou o postal. Meio amassado, tantos comícios, ruas sujas do Village, batiam outra vez na porta, tá na hora, doutor, ainda assim tornou a ler, já vou, criatura:

“Caudilho velho, aqui tá o maior barato. Thanks pela grana, pouca mas valeu, Acho uma caretice tua continuar nessa história, eu ainda tô naquelas de podres poderes, you know. Mas dou força e se tu chegar lá até voto e faço outro disco. Pensei em regravar Teixeirinha, com sintetizador fica bárbaro. Kisses, Little N.”

Guria despelotada, resmungou, nunca sabia se irritação ou uma espécie de carinho. Tornou a botar o cartão no bolso, nem mostrei pra pobre da Neusa. Deu outro chupão na bomba, bosta de erva lavada, nem a erva mais presta neste país, bagaceirada. Lá fora, foguetes mais altos. Espiou outra vez pela janela, e outra vez o pampa imenso, pudesse esporeava o cavalo e saía agora no tranquito em direção a São Borja, Itaqui, Uruguaiana, ver o sol deitar no Uruguai, no lado dos correntinos. Mas batiam na porta, num encansinamento ele puxou o zíper da bombacha, parece côsa de fresco, e só se olhou no espelho para dar um nó no lenço vermelho. Única, última vaidade: arrepiou os pelos das sobrancelhas, que até bigode e cabelos, como tanta coisa, tanta gente, tinham ido embora. Abriu a porta, saiu para o corredor. E já ia afundar naquele alvoroço de abraços quando um chamango tocou no seu ombro para avisar, voz baixa:

- Me desculpe, seu Leonel, mas o senhor tá só com um pé de bota.

                       Jornal do Brasil, Caderno Ideias, 12 de novembro de 1989

E aqui, a música cujos versos iniciais Caio F. usa de epígrafe



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