sexta-feira, 26 de abril de 2013

Belíssima e dolorosa secura



                                                        A Hora da Estrela
                                                 é como Clarice Lispector,
                                                      inteligente e sensível

Era tudo mentira: a infilmável (e para muita gente, ilegível também) Clarice Lispector era filmável, sim. E que belo filme, capaz de ganhar 12 prêmios no Festival de Brasília do ano passado, outros em Berlim e outros em Paris. Tudo isso para uma história onde pouco ou nada acontece, como pouco ou nada acontece na vida de sua personagem, a nordestina Macabéa, transplantada para a cidade grande.

Por trás dos letreiros de apresentação, ouvem-se os sinais e as informações “culturais” da Rádio Relógio, que Macabéa ouve ininterruptamente. Depois, ela bate à máquina no escritório. Tecla por tecla, um dedo só. O ritmo monocórdico, mas girando em profundidade, como um parafuso, da prosa de Clarice Lispector, transparece nas imagens. Decidida, Suzana Amaral envereda por uma narrativa lenta, intimista, quase muda. Como Clarice, na sua inteligência, talento e sensibilidade, fazendo o esforço de tentar compreender uma personagem desinteligente, sem talento algum e grossa sensibilidade. O resultado é pleno de compreensão humana: aquela compreensão que, às vezes, acima das ideologias, os mais bem-dotados intelectual, estética ou/e economicamente conseguem ter dessa extensa legião de deserdados que forma o povo brasileiro.

E Macabéa é a cara do povo brasileiro, no seu sem-gracismo, na falta de futuro, no passado tragicamente vago e no presente quase inexistente. O curioso é que, acusada de aristocrática e elitista, em A Hora da Estrela Clarice Lispector foi capaz de traçar um dos mais pungentes retratos do Brasil que conheço. Fiel à ideia de que cinema se faz com imagens, Suzana Amaral teve a sabedoria de retirar do texto de Clarice tudo que ele tem de metalinguagem, de autoinvestigação. E o filme é principalmente imagem: belíssimas imagens na dolorosa secura fotograda por Edgar Moura.

Talvez a diretora perca um pouco a mão no final, ao relacionar a estrela de que falava Clarice, à estrela do carro que atropela Macabéa. E na lírica corrida em câmera-lenta. Pouco importa: há muitas leituras possíveis de Clarice. A de Suzana Amaral foi inspirada. Tão inspirada que encontrou Marcélia Cartaxo para fazer Macabéa, numa atuação de tal forma identificada que é mais que uma atuação: é uma vivência. Profunda e perigosa a ponto de fazer Marcélia correr o risco de permanecer para sempre como a moça que não sabia sequer passear. Quem gosta de bons atores, vai se deliciar com José Dumonte (Olímpio), Tamara Taxman (a biscatona Glória) e Fernanda Montenegro (inesquecível como a cartomante). E quem sabe olhar com olhos diferentes a multidão feia que cruza diariamente o Viaduto do Chá. Porque A Hora da Estrela acontece toda hora, ali, na avenida São João.
            
                         OESP, Caderno 2, quarta-feira, 23 de abril de 1986


Em 1984, Maria Bethânia fez A Hora da Estrela, show baseado no livro de Clarice, inclusive com trechos de falas dos personagens. No vídeo abaixo, ela fala do espetáculo para Roberto D'Àvila. Trechos de cenas de músicas, inclusive A Hora da Estrela de Cinema, que Caetano Veloso compôs especialmente para o show. A canção está na metade (7:00) e no cenário tem uma foto imensa de Clarice Lispector.



Aqui, o  trailer do filme A Hora da Estrela


Aqui, A Hora da Estrela - Filme Completo


Um comentário:

  1. Lindo filme,e Macabéa é um lindo personagem,interpretado por uma grande atriz.

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