sexta-feira, 5 de abril de 2013

Um livro plenamente habitável

Há um conto de Clarice Lispector, não lembro o nome, em que depois de mil complicações uma menina consegue para ler Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. E lá pelas tantas, deslumbrada com o livro, ela diz: “Era um livro para viver dentro dele”. São raros os livros assim que você possa morar um pouco dentro, como uma outra vida paralela. Conheço poucos. Alguns são obras-primas, outros não, porque um livro-para-viver-dentro-dele não é necessariamente um clássico. John Fante, por exemplo, é supermemorável. Um livro assim tem qualidades meio imperceptíveis, um jeito de puxar você para dentro dele e misturar na sua própria vida. Tenho uma amiga que está morando, há meses, dentro da série Duna, de Frank Herbert. Talvez esses livros ofereçam, pura e simplesmente, aquilo que o velho Roland Barthes chamava de o prazer do texto.


Sempre achei Garcia Márquez uma delícia, antes do Nobel, desde que morei meses dentro de Cem Anos de Solidão. Anos depois, pirei muito com Crônica de Uma Morte Anunciada – li, reli, tresli e até hoje acho que talvez seja seu melhor livro. É simplesmente perfeito, só que não é um-livro-para-se-morar. Já O Amor Nos Tempos do Cólera é plenamente habitável: cheio de cheiros (já começa com um, o de amêndoas amargas, que lembra “amores contrariados”), de cores, de formas. É folhetinesco no melhor sentido: você torce, se envolve, se comove. Um certo toque folhetinesco talvez seja característica dos livros memoráveis (O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, por exemplo, ou Jane Eyre, de Charlotte Bronte): humaniza e alivia as experimentações geladas. Reconforta. Como uma chá.

Pode ser que O Amor não esteja à altura dos dois outros que citei. Mas um-livro-de-se-morar-dentro também tem essa característica: a gente não se importa nem um pouco com ele ser ou não grandioso. Mas no final de cada dia desumanizado, achei um presente poder rebater a dose diária de cinismo e atordoamento com o fiel amor de Florentino Ariza por Fermina Daza. Como quando criança mergulhava nas Mil e Uma Noites, ou naqueles Monteiros Lobatos de que Clarice falava. Para que pedir mais? Quero ser cada vez mais simples. Mais burro até. Só para sentir mais vezes esse gostinho raro: o prazer. Do texto e da vida.

                                         OESP, Caderno 2 – Domingo, 2 de novembro de 1986

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