A Hora da Estrela, o último livro escrito por Clarice Lispector, foi relançado (Rocco) em uma caprichada edição capa dura com manuscritos e ensaios inéditos. Abaixo, texto de Caio Fernando Abreu quando do lançamento do filme, em 1986.
é como Clarice Lispector
Inteligente e sensível
Era tudo mentira: a
infilmável (e para muita gente, ilegível também) Clarice Lispector era filmável
sim. E que belo filme, capaz de ganhar 12 prêmios no Festival de Brasília do
ano passado, outros em Berlim e outros em Paris! Tudo isso para uma história
onde pouco ou nada acontece, como pouco ou nada acontece na vida de sua
personagem, a nordestina Macabéa, transplantada para a grande cidade.
Por trás dos letreiros de
apresentação ouvem-se os sinais e as informações “culturais” da Rádio Relógio,
que Macabéa ouve ininterruptamente. Depois, ela bate à máquina no escritório.
Tecla por tecla, um dedo só. O ritmo monocórdico, mas girando em profundidade,
como um parafuso, da prosa de Clarice Lispector transparece nas imagens.
Decidida, Suzana Amaral envereda por uma narrativa lenta, intimista, quase
muda. Como Clarice, na sua inteligência, talento e sensibilidade, fazendo o
esforço de tentar compreender uma personagem desinteligente, sem talento algum
e grossa sensibilidade. O resultado é pleno de compreensão humana: aquela
compreensão que, às vezes, acima das ideologias, os mais bem dotados
intelectual, estética ou/e economicamente conseguem ter dessa extensa legião de
deserdados que forma o povo brasileiro.
E Macabéa é a cara do povo
brasileiro, no seu sem gracismo, na sua falta de futuro, no passado
tragicamente vago e no presente quase inexistente. O curioso é que acusada de
aristocrática e elitista, em A Hora da Estrela, Clarice Lispector foi capaz de
traçar um dos mais pungentes retratos do Brasil que conheço. Fiel à ideia de
que cinema se faz com imagens, Suzana Amaral teve a sabedoria de retirar do
texto de Clarice tudo que ele tem de metalinguagem, de autoinvestigação. E o
filme é praticamente imagem: belíssimas imagens na dolorosa secura fotografadas
por Edgar Moura.
Talvez a diretora perca um
pouco a mão no final, ao relacionar a estrela que falava Clarice, à estrela do
carro que atropela Macabéa. E na lírica corrida em câmera lenta. Pouco importa:
há muitas leituras possíveis de Clarice. A de Suzana Amaral foi inspirada. Tão
inspirada que encontrou Marcélia Cartaxo para fazer Macabéa, numa atuação de
tal forma identificada que é mais que uma atuação: é uma vivência. Profunda e
perigosa a ponto de fazer Marcélia correr o risco de permanecer para sempre
como a moça que não sabia sequer passear. Quem gosta de bons atores vai se
deliciar com José Dumont (Olímpico), Tamara Taxman (a biscatona Glória) e
Fernanda Montenegro (inesquecível como a cartomante). E quem sabe, olhar com
olhos diferentes a multidão que cruza diariamente o Viaduto do Chá. Porque A
Hora da Estrela acontece a toda hora, ali, na Avenida São João.
O Estado de S. Paulo,
Caderno 2, Quarta-feira, 23 de abril de 1986
O trailer de A Hora da Estrela
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