sexta-feira, 9 de junho de 2017

Belíssima e dolorosa secura: A Hora da Estrela, o filme

A Hora da Estrela, o último livro escrito por Clarice Lispector, foi relançado (Rocco) em uma caprichada edição capa dura com manuscritos e ensaios inéditos. Abaixo, texto de Caio Fernando Abreu quando do lançamento do filme, em 1986. 

A Hora da Estrela
é como Clarice Lispector
Inteligente e sensível

Era tudo mentira: a infilmável (e para muita gente, ilegível também) Clarice Lispector era filmável sim. E que belo filme, capaz de ganhar 12 prêmios no Festival de Brasília do ano passado, outros em Berlim e outros em Paris! Tudo isso para uma história onde pouco ou nada acontece, como pouco ou nada acontece na vida de sua personagem, a nordestina Macabéa, transplantada para a grande cidade.

Por trás dos letreiros de apresentação ouvem-se os sinais e as informações “culturais” da Rádio Relógio, que Macabéa ouve ininterruptamente. Depois, ela bate à máquina no escritório. Tecla por tecla, um dedo só. O ritmo monocórdico, mas girando em profundidade, como um parafuso, da prosa de Clarice Lispector transparece nas imagens. Decidida, Suzana Amaral envereda por uma narrativa lenta, intimista, quase muda. Como Clarice, na sua inteligência, talento e sensibilidade, fazendo o esforço de tentar compreender uma personagem desinteligente, sem talento algum e grossa sensibilidade. O resultado é pleno de compreensão humana: aquela compreensão que, às vezes, acima das ideologias, os mais bem dotados intelectual, estética ou/e economicamente conseguem ter dessa extensa legião de deserdados que forma o povo brasileiro.

E Macabéa é a cara do povo brasileiro, no seu sem gracismo, na sua falta de futuro, no passado tragicamente vago e no presente quase inexistente. O curioso é que acusada de aristocrática e elitista, em A Hora da Estrela, Clarice Lispector foi capaz de traçar um dos mais pungentes retratos do Brasil que conheço. Fiel à ideia de que cinema se faz com imagens, Suzana Amaral teve a sabedoria de retirar do texto de Clarice tudo que ele tem de metalinguagem, de autoinvestigação. E o filme é praticamente imagem: belíssimas imagens na dolorosa secura fotografadas por Edgar Moura.

Talvez a diretora perca um pouco a mão no final, ao relacionar a estrela que falava Clarice, à estrela do carro que atropela Macabéa. E na lírica corrida em câmera lenta. Pouco importa: há muitas leituras possíveis de Clarice. A de Suzana Amaral foi inspirada. Tão inspirada que encontrou Marcélia Cartaxo para fazer Macabéa, numa atuação de tal forma identificada que é mais que uma atuação: é uma vivência. Profunda e perigosa a ponto de fazer Marcélia correr o risco de permanecer para sempre como a moça que não sabia sequer passear. Quem gosta de bons atores vai se deliciar com José Dumont (Olímpico), Tamara Taxman (a biscatona Glória) e Fernanda Montenegro (inesquecível como a cartomante). E quem sabe, olhar com olhos diferentes a multidão que cruza diariamente o Viaduto do Chá. Porque A Hora da Estrela acontece a toda hora, ali, na Avenida São João.

            O Estado de S. Paulo, Caderno 2, Quarta-feira, 23 de abril de 1986

O trailer de A Hora da Estrela 




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