quarta-feira, 21 de junho de 2017

Falta o toque essencial da transgressão

Dei uma passada no Centro Convenções Rebouças, na segunda à tarde, para assistir ao debate sobre literatura feminina na Bienal Nestlé. O tema me interessa. Não que ache que literatura tem sexo. Mas, se penso em literatura brasileira contemporânea me vêm nomes – por coincidência femininos – da maior importância: Hilda Hilst, Lya Luft, Márcia Denser, Helena Jobim, Adélia Prado, Tânia Faillace, Ieda Inda, Sônia Coutinho, Marly de Oliveira ou, na área de ensaio ou crítica, Heloisa Buarque de Holanda e essa ótima Flora Sussekind. Não deixaria de lado também poetas como Orides Fontella, Ana Cristina César, Ledusha e Bruna Lombardi.

Bem: elas não estavam lá. Ana C., a mais contundente e contemporânea voz poética surgida neste país, porque suicidou-se há mais de dois anos. Lya Luft não veio. E transgressoras diabas como Márcia Denser e Lya Luft jamais seriam convidadas para um chá desse teor. Bruna é linda demais: ninguém admite que beleza possa ter talento. Restou Sônia Coutinho, dando seu depoimento despojado, sem a menor intenção de ser ou parecer enviada dos deuses.

Bella Jozef, com toda dignidade, comandou como pôde depoimentos e debates onde pouco ou nada de estimulante foi dito. E ficou no ar uma ideia estranha: que literatura feminina, de repente, possa ser a orgia de lugares comuns pseudoliterários de uma Myriam Fraga ou de uma Stella Leonardos. De que literatura seja deliquescência e harpejos, vontade que os pobres mortais cultivem as flores do espírito para que o planeta possa finalmente transformar-se num mar de água de rosas. Ou de leite Davene. Quem seria capaz de imaginar, ali, que em literatura feminina brasileira cabem também a loucura de Maura Lopes Cançado ou Luciane Samôr – uma no hospício, outra esquecida em Minas?

Fazia frio. Fui embora deprimido. Fiz um chá, deitei às nove da noite. Fiquei deitado, lendo e relendo os últimos versos escritos por Ana Cristina César. Estes: “Não querida, não é preciso correr assim do que vivemos.O espaço arde. O perigo de viver”. Não é, senhoras?


                  O Estado de SP, Caderno 2, Quarta-feira, 9 de Julho de 1986

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