Nos amávamos tanto
Luiz Antônio Martinez Corrêa, Cacaso, Henfil:
para onde
foram aqueles sonhos dourados?
Entre minhas muitas
obsessões, existe um poema. Curtinho, absolutamente simples, chama-se Idade
Madura e tem apenas estes quatro versos: "Meu coração anda inquieto e
sufocado/ Como na infância, nas noites de tempestade./ É risonho o meu futuro?
Minha solidão é indescritível". Seu autor: Cacaso. Final do ano passado,
aparentemente por razão nenhuma, como acontece com as obsessões grandes ou
pequenas, poéticas ou não, o poema voltou com toda força. Eu passava os dias a
recitá-lo, debruçado sobre o microcomputador do astrólogo Pedro Tornaghi, no
Rio de Janeiro, conscientemente me recusando a ler jornais, ver televisão ou
entrar em contato com qualquer meio de comunicação capaz de tornar mais
presente esta coisa difícil - o mundo real. Até que não aguentei, arrumei um
rádio.
A primeira notícia que o
rádio trouxe foi: o diretor teatral Luiz Antônio Martinez Corrêa (era ótimo,
dele vi Theatro Musical Brasileiro 1914-1945, talvez o melhor espetáculo em
cartaz no Rio), 37 anos, tinha sido assassinado com 80 facadas. Desliguei o
rádio. E só saí de casa no dia 30 de dezembro para uma manifestação na praça
Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Além da missa de sétimo dia em memória de
Luiz Antônio, artistas, intelectuais e nem artistas nem intelectuais, mas apenas
pessoas preocupadas com a justiça, pediam providências à polícia contra o assassinato,
entre 1984 e 1987, de cerca de 300 homossexuais no país. Sob o sol de quase
quarenta graus, muita gente chorava.
O mais irônico era lembrar,
naquela pracinha de Ipanema, de 15 ou 20 anos atrás, como aquele espaço tomado
por centenas de pessoas (algumas delas estavam lá) coloridas e cheias de vida,
acreditando nos novos tempos de paz e amor. Cabeça baixa, a gente lembrava. E
nem Chico e Caetano cantando, nem Fernanda Montenegro recitando linduras de
Adélia Prado, nem a dignidade de Marieta Severo, nem mesmo o sol, o céu azul de
verão, nem mesmo a enorme ciranda da multidão cantando de mãos dadas Aquarela
do Brasil ou a chuva de papel picado dos edifícios na Visconde de Pirajá eram
capazes de esconder que o horror está solto na cidade do Rio de Janeiro e no
Brasil. Aos gritos ou em silêncio, pediam-se providências para todos esses
crimes com características semelhantes (cordas, facadas e asfixia) demais para
serem mera coincidência.
Voltei para o
microcomputador de Pedro disposto a manter o mundo real à distância, pelo menos
até terminar nosso trabalho. E consegui. Caminhar de tardezinha na praia, ao
mesmo tempo em que trazia de volta aqueles versos assustados de Cacaso, trazia
também os de Adélia, que Fernanda Montengro disse na praça: "A Vida é tão
bonita/ basta um beijo/ e o universo se recompõe/ uma necessidade cósmica nos
protege". Pois - eu repetia olhando o horizonte do mar - o Senhor não há
de abandonar quem, nestes tempos, ainda ousar o beijo e quiser beber dessa
beleza da vida. A necessidade é cósmica/ e nos protege. Mas, entre as iluminações
de fé, voltavam também, obsessivos, aqueles quatro versos de Cacaso e seu clima
de desamparo. E, agora, o que vai acontecer?
Dia de voltar, no aeroporto,
comprei uma revista. Lá estava: dias antes, Cacaso tinha morrido de um enfarte
fulminante, e eu nem sabia. Então retomar São Paulo, dura sampa estranhamente
deserta, as chuvas de verão, certos dias como estar dentro de um oco cheio de
espinhos, depois a morte de Henfil, com todo o horror voltando à tona. No
caderno Idéias do Jornal do Brasil, no último sábado, numa matéria chamada Nós
Que Nos Amávamos Tanto, Wilson Coutinho, Zuenir Ventura e Tárik de Souza fazem
um balanço melancólico da geração que viveu aqueles anos dourados de 68. E
agora tenta seguir em frente, entre Aids, assassinatos, suicídios, mortes
precoces, secas desilusões e escassas esperanças.
Não sei dizer nada cegamente
luminoso para encerrar. Perdoe eu não voltar como quem traz um sorriso nos
lábios e flores e frutas nas mãos. Mas imagino que você sinta algo semelhantes
àquele susto manso do poema do Cacaso e acho que sempre nos podemos olhar nos
olhos ao perguntar: "É risonho o nosso futuro?" Então, mesmo sem
convicção nem certeza, responder que sim, que sim, que sim. Porque não há de
ser inútil, mente.
Caderno 2, OESP, 13 de
janeiro de 1988
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