quinta-feira, 28 de novembro de 2024

O Movimento do Tempo

 O MOVIMENTO DO TEMPO


Jovem, velho: essas palavras
                                                         perdem o sentido quando
                                                      ambas se encontram no ponto vivo

Novo, antigo: não sei mais o que é isso. E andava pensando nessas coisas, quando de repente, como se fosse por acaso me cai nas mãos um artigo do Jornal do Brasil da última sexta-feira, escrito pelo Paulo César Coutinho, e exatamente sobre o mesmo assunto. (A propósito: foi das mãos do Paulo César, há 15 anos, que recebi aquele primeiro sonho dourado. De mãos melhores, impossível.)

Jovem, velho: não sei mais o que é isso. Gosto de música, por exemplo, e atualmente, no hit parade lá de casa, os dois primeiros colocados (empatados) são Me Chama de Lobão, com João Gilberto, e Luz Negra, de Nelson Cavaquinho, com Cazuza - entendeu? Cazuza, o "jovem" roqueiro (o melhor deles, e faço questão de repetir uma vez mais, na minha modestíssima opinião Cazuza é o que de melhora aconteceu à MPB depois de Caetano) cantando lindamente o velho Nelson Cavaquinho. E o "velho" João Gilberto cantando - mais lindamente difícil imaginar - o "jovem" Lobão. Jovem, velho, novo, antigo - deixam de ter qualquer significado quando ambos se encontram nesse ponto justo. O ponto vital, o ponto belo, o ponto vivo.

Em seu artigo falando da passagem (inevitável) do tempo, Paulo César diz: "Mas é possível fazer essa viagem escolhendo o presente como região ideal de moradia". Sim, lembrar do que passou é perfeitamente humano e natural, mas se você começa a querer que o tempo volte, e em consequência fechar-se para o presente, aí começa também a correr o risco de sentir errado, começa a cair fundo e sem volta no círculo da frustração. Porque o que passou, já rolou, não tem volta. Falo o óbvio, tão óbvio que nem todo mundo vê. Ou se recusa a ver - tão mais confortável manter-se hipoteticamente nesse plano estável onde nada muda - e é então que começa a envelhecer. Envelhecer do mal, envelhecer na treva, sem esperança nem paciência para o "novo". Que existe.

O velho também existe, sim, mas só quando se recusa a ver o novo, porque é se alimentando do novo que o velho consegue deter a sua esclerose. Como o novo: que precisa alimentar-se do "velho" para não eternamente com aquele gosto ácido de maçã verde. Repuxenta, dizia minha irmã Márcia quando era criança: o novo que se supõe o primeiro novo sobre a face da terra e ignora tudo o que veio antes, tem sempre esse sabor repuxento. Eu mesmo, fui muito repuxento.

E eu tinha tanto medo dos 40 anos - como aos 20, pânico dos 30, e eles chegaram, passaram, e eu resisti, e você e ele resistiram também, e vamos ultrapassar os 40, e quem sabe os 50, e depois os 60, e assim por diante. É que ninguém me/nos preparou para ir envelhecendo, somos educados para a eterna juventude - e na eterna juventude dos 20 anos, a velhice é uma coisa que só acontece aos outros. Apenas aos 30, na primeira volta de Saturno (cronos) é que vem a percepção de que o tempo existe.

O tempo existe, sim, e não congela - feito Plano Cruzado. Ou se você supõe que congela (sempre há formas artificiais, científicas ou neuróticas, de fingir que sim), corre o risco de ver tudo desabar de um dia para o outro. Mas dentro do movimento do tempo, e destes pequenos acidentes meio lamentáveis e totalmente inevitáveis que acontecem no nosso corpo, há qualquer coisa que resiste sempre, tão novinha e fresca como a pele de um bebê. As almas atentas nunca deixam de cheirar a talco - como a do Juvenal Pereira, por exemplo, que hoje (segunda) faz 40 anos. Ele está sentindo a maior firmeza. Eu também, colega. Agora é que vai começar a valorizar. Cada vez mais.

PS: Caio tinha 38 anos quando escreveu a crônica

Caderno 2 Estadão, Quarta-Feira 26 de novembro de 1986




terça-feira, 5 de abril de 2022

Uns dias na vida de Caio F. às vésperas dos 28 anos

Revista Paralelo, Outubro de 1976

É raro esse texto publicado em outubro de 1976 no primeiro número da revista Paralelo - e tenho a impressão de que não está em nenhum livro. Bem poderia ser um capítulo de uma autobiografia. Em Porto Alegre, logo depois da publicação de O Ovo Apunhalado, às vésperas de completar 28 anos ("vividos aos trancos e barrancos"), ele ouve de Juarez Fonseca, editor da futura revista, "tu vai ter uma página só tua na Paralelo, pra escrever o que tu quiser"). Daí surgiu esse Que se há de fazer?, naquele estilo completamente Caio F., com um sabor de primeira coluna escrita por ele.

 

                     Que se há de fazer?

Por favor, você que está aí me lendo agora, você tem alguma sugestão? O que é que a gente faz quando tudo parece ter se tornado incolor - inodoro - insípido - inclusive ou/e principalmente nós mesmos? Como é que a gente deve agir dentro de um terremoto interno (ou implosão subjetiva, para usar uma palavra da moda)? Gabriel de Britto Velho, você que apaga tão bem o cigarro no peito, me diga o que se pode fazer quando o peito está vazio e não há nada para ser dito. Tentei, eu estou tentando: já faz uns dois meses que o Juarez Fonseca chegou pra mim e disse olha, tu vai ter uma página só tua na Paralelo, pra escrever o que tu quiser. Eu fiquei aterrorizado e disse, mas eu não tenho nada pra dizer, Juarez, acho que não disse, só pensei, bem ainda tem DOIS meses pela frente, até lá é impossível que não pinte nada. Não pintou nada, em dois meses não saiu coisa alguma. Fiz uma pequena pesquisa de mercado, o Giba Rocha disse que tinham me convocado porque um certo depoimento que eu havia dado à revista Escrita - em tempos, digamos, mais veementes - tinha comovido muita gente e que portando eu parecia o cara-_mais-indicado-a-servir-de-porta-voz-de-uma-certa-faixa-etária-de-uma-determinada-geração (ele não usou essas palavras nojentas, disse dum jeito bem mais digno) - eu quis dizer que achava que não era nada disso, que eu só tinha publicado uns troços aí e contado umas coisas que tinham acontecido comigo e com outras gentes que conheço, mas de novo não disse nada, talvez por vaidade ou messianismo idiota fiquei pensando não, quem sabe eu poderia mesmo ser esse tal porta-voz (algumas tendências megalômonas às vezes mal controladas). Acontece que não sou e não quero assumir esse papel, porque - estou usando o máximo de, desculpem, sinceridade - não sirvo nem pra porta-voz de mim mesmo. Nos últimos tempos tenho me movimentado com dificuldade dentro dos meus escombros-de-dentro, por uma série de razões demasiado pessoais para serem trazidas ao baile (trata-se de um baile?), ando com uma autocrítica violentíssima e não consigo, simplesmente não consigo pensar organizadamente (?) ou ter ideias claras ou/e precisas sobre as coisas, quaisquer que sejam. Eu disse: quaisquer. Nas cartas que tenho escrito ou nos meus rabiscos solitários (e vis, talvez) no meio da noite, acabo caindo sempre na mais lamentável das auto-lamentações: dói, tudo dói, DÓI PRA CACETE, meu irmão, como uma nevralgia psico-espiritual (!), parece que uma peça importante para o meu funcionamento simplesmente quebrou, e eu não sei o que fazer, e tenho consciência de o quanto isso pode parecer ridículo e juvenil, só não estou mais a fim de fingir que tudo-bem, você me entende? e é isso mesmo que eu sou "esse ter nascido me estragou a saúde" ambulante e crônico. Mas o que estou tentando explicar: não me sinto em condições de escrever página nenhuma para Paralelo, desculpa, Emílio Chagas, você é o melhor companheiro pra beber e falar de Scott Fitzgerald e Lima Barreto que conheço, desculpa, Giba Rocha, desculpa, Juarez, eu amo vocês, mas. Entre algumas coisas que pensei em escrever, uma até chegou a ser esboçada: uma carta aberta para o Jaime Gargioni, jornalista e gente que uns conheceram, outros não, e que deve estar na Inglaterra ou sabe deus onde, visto que os Correios e Telégrafos não me entregam as cartas do exterior (qual é? não trafico drogas nem informações watergatianas...), mas a carta, a carta era também queixosa, autopunitiva, bodienta, a única coisa legal era um trecho sobre a Rita Lee, mas atualmente o que se pode dizer de carinhoso sobre ela é impublicável ou/e punível, pelo menos do meu ponto de vista paranóico convicto. Pensei também em dar uma geral no chamado boom-da-literatura-brasileira, mas todo mundo já falou laudas e laudas sobre isso, eu não teria nada de novo a acrescentar, a não ser o nome de alguns que acho muito bons e que estão sendo esquecidos injustamente (porque o boom, desconfio, é um boom de fundo de panela) - Lucienne Samôr, Antonio Carlos Vianna, Hilda Hilst, Júlio César Monteiro Martins, Luiz Fernando Emediato - e que também não são encontrados nas livrarias porque não são distribuídos decentemente ou nem sequer encontraram editor. Além disso, dizer o quê? Que é isso aí? Mas se tenho certeza que não é nada disso. Sei, sei que talvez esteja desperdiçando o que se chama uma-excelente-oportunidade para, sei lá, rasgar a bandeira, falar mal de todo mundo, dizer coisas altissonantes que estremecessem as nações e os povos, eia, sus, avante guerreiro - e agora me lembro do monólogo de Izabel Ibias em Sarau Das Nove às Onze (que, segundo o centro acadêmico da Filô era um espetáculo-alienado-elitista-e (como é que se diz mesmo?) - ah: pequeno-burguês: "Eu gostaria que as pessoas pegassem fogo com as minhas palavras. Mas essas palavras eu não tenho". Pois é. E no momento não me sinto sequer em condições de fingir para alguém/ninguém que tenho coisas pra dar ou dizer, exceto desorientação, amor contido, raiva e nojo. Às vésperas duns 28 vividos aos trancos e barrancos, nada tenho de grandioso a declarar, exceto mediocridades como me-sinto-profundamente-cansado-e-cada-manhã-é-uma-batalha-insana-inventar-um-motivo-pelo-menos-razoável-para-deixar-a-cama-e-enfrentar-as feras. Psiquiatra, já tenho um, não se preocupem, clínica não resolve - quem assistiu Family Life concorda comigo e, porra, suicídio, também não, quero pelo menos ver no que vai dar tudo isso. E é justamente a mim, escapista, subjetivo, mórbido e covarde, que vêm pedir essa tal página. Tem a Tania Faillace, uma das melhores escritoras desta terra, tem o charme contracultural do Eduardo San Martin, tem a secura-ponta-de-faca do Carlinhos Carvalho, tem a Ieda Inda linda e índia lá em Florianópolis, tem a música da linguagem do Sergio Caparelli - logo eu? E justamente agora? Ô, caras, eu tô perdido no meio do mato, ando juntando todos os meus cacos para ver se continuo existindo e entre todos eles não consegui encontrar absolutamente nenhum que me pareça digno de ser explorado literária ou jornalisticamente (argh!) e trazido na bandeja, sangrento e palpitante ao (des)conhecimento de vocês. Pilhas de frustrações, potes de amargura, jarras de desilusão, fadigas e dores tão mesquinhas e prosaicas e inultrapassadas (porque, acima de tudo, sou ainda um imaturo - ou, segundo Paulo Hecker Filho,um delicado: certo, que escreveu Internato tem o direito de chamar até Jean Genet de delicado) que eu não conseguiria fingir que sou capaz de superá-las para produzir uma brilhante e objetiva página para a Paralelo. Já não acredito em brilhos, minha fase de purpurina já passou, e a obetividade - bem, o que é mesmo objetividade? Que fazer, então? E os destinos da nação, e as dores do povo? Hoje é quarta-feira, prometi ao Emílio que entregaria a página amanhã - são onze horas da noite e tudo que me saiu até agora foi essa deplorável entregação: isso. A garganta ardida de cigarros, pobre rapaz, a língua gosmenta de café, coitado, costas doloridas, infeliz de mim. Tem lua cheia lá fora e sobre a escrivaninha, ao alcance de minha mão, Mário Quintana, Kafka e Adélia Prado. Quem sabe Kafka me salva. Abro ao acaso: "Depois de quatro visitas, M. se vai, parte amanhã pela manhã. Quatro dias mais tranquilos, em meio a dias de tortura. Há um longo caminho entre o fato de que sua partida não me entristeça (pelo menos não me entristeça realmente) e o fato de que sua partida me entristeça infinitamente. Francamente: a tristeza não é o pior". Bem, acho que não ajuda muito... M. será Milena? Ou Max? Reticências. Ah: para complicar tudo ainda mais, hoje estou naquele estado típico de quem esperou um telefonema a tarde inteira, sem receber (é ume estado elitista, concordo, afinal, só uns 10% da população dispõe de telefone - mas acontece). Vocês sabiam que vão destruir Triunfo? Eu gostaria de escrever intensamente sobre as muitas viagens à Triunfo e as pedras na beira do rio e a travessia de barca e os cogumelos e os jasmins-do-cabo e de como me assusta que justamente ali vá ser instalado o tal Monstro Petroquímico (dizem que tudo-bem, porque os ventos vão soprar tudo pras bandas de cá...). Mas jamais teria argumentação suficientemente, digamos, embasada (argh!) para modificar alguma coisa. O problema é esse, um escritor, um ficcionista, melhor dizendo, não modifica absolutamente nada. As grandes sacanagem sociais continuam acontecendo apesar das nossas ficções. Eu não estou querendo que você (ô, cara, você ainda está aí?) pense que. Ou não. Sei da minha absoluta ineficiência como escritor. Escreve talvez por uma espécie de incompatibilidade-de-gênios com a vida, escrevo para reinventar, para organizar o caos, para não enlouquecer de impotência, para re-fazer. Mas não pense que não sei do inútil disso. Mário Quintana, Mário Quintana talvez tenha algo a dizer sobre. Abro, encontro: "Nenhuma pergunta demanda resposta / Cada verso é uma pergunta do poeta / E as estrelas... / as flores... / o mundo... / são perguntas de Deus". Os homens também são perguntas de deus, Quintana? E não demandam resposta? Sinto muito, gostaria de ser capaz, hoje, aqui, agora, de dizer algo dramático ou poético ou revolucionário ou profundo ou doloroso ou etc. O mundo. Os homens. Deus. Pois é. Uma quarta-feira besta, com uma lua-cheia besta no céu, a Rua da Praia estava cheia de gente besta (passar na Rua da Praia ao anoitecer é concluir que a explosão demográfica é algo in-cons-ten-tá-vel), vim a pé num ônibus 77 (esotérico...), fui pisado, humilhado e ofendido, a única pessoa que poderia ter transformado este dia num negócio menos besta não estava em casa (você nunca tá em casa?) e foi besta demais eu precisar subir noutro ônibus e tomar banho e jantar e engolir uma xícara enorme de café preto e fumar incontáveis Hollywoods tentando ser absolutamente honesto, mas só conseguindo tornar tudo ainda mais besta, onde andará você nessa besteira toda? Chega, Adélia Prado, quem sabe: "Vamos dormir juntos, meu bem / sem sérias patologias:/ Meu amor é este ar tristonho / que eu faço pra te afligir,/ um par de fronhas/ onde eu bordei nossos nomes com ponto cheio de suspiros". O nome é Psicórdica, às vezes dá vontade de sair gritando Porto Alegre afora: "Vamos dormir juntos, meu bem/ sem sérias patologias". Às vezes parece que a tal revolução sexual não chegou por aqui - é preciso montar uma barraca na Feira do Livro só com obras de Wilhelm Reich e um cartaz bem grande com esta frase de Buñuel: "Semen retetum venenum est". Que se há de fazer, que se há de fazer? Não costuma ser assim o tempo todo, mas hoje é um dia especialmente besta. Como costumar ser os dias numa cidade (num mundo?) onde as pessoas cada vez se falam menos, se tocam menos e têm menos esperança ou alegria - ou será que estou projetando? Acho que não, Flavio Oliveira já falou disso melhor que eu no Osso. Quem assistiu O Osso me entende, e sabe que é assim que nós estamos, que nós temos nos equilibrado na corda bamba deste Paralelo 30 (como é que é? não era um lugar altamente esotérico? não aconteceriam coisas incríveis por aqui?). Ficamos à espera de acontecimentos incríveis, ficamos à espera. E já faz tempo, e a sopa já esfriou, e a mosca já pousou. Alguém me disse, já faz tempo, num bar: - "um dia alguém precisa virar a mesa ao invés de só pedir outra Brahma". Arrotou, chamou o garçon (seria o Isaac?) e pediu outra.

Revista Paralelo, Porto Alegre, Outubro de 1976

 

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O caleidoscópio Caetano Veloso

7 agosto: aniversário de Caetano Veloso. Caio F. adorava Caetano Veloso. O texto abaixo foi escrito por ele em agosto de 1989, quando Caetano foi o homenageado do Prêmio Shell para a música brasileira. E ficou regristrado na contracapa de um disco, uma coletânea com 13 de suas canções, lançada então. Ei-lo:

Qualquer antologia da obra de Caetano Veloso guarda uma facilidade apenas aparente. Fácil, sim, pela qualidade impecável de seu trabalho. Mas dificílimo por sua vastidão. Porque há muitos Caetanos. Desde o vanguardista decidido a atuar radicalmente sobre os destinos da música popular brasileira, com Alegria, Alegria, em 1967, até o cantor cada vez mais refinado - capaz de dar nova vida à música de outros compositores, de Noel Rosa a Djavan, de Carlos Gardel a David Byrne, de Humberto Teixeira a Cazuza.

Dentro dos muitos Caetanos, na verdade talvez exista somente um. E esse é vasto o suficiente para, na sua visão de mundo, abarcar tanto os estados amorosos mais íntimos e encantados (ou desesperados) quanto a alma de uma cidade, de um país ou do próprio planeta. Saindo de si, ele contempla a sua pequenez e a pequenez do humano perdido num planetinha azul a girar num infinito incompreensível, em Terra, ou mergulhando em si, confessa-se inevitável e nobremente piegas em Muito Romântico.

E ao contrário do que todos pensam, Caetano não é baiano. De Bahia, é certo guardou a ligação com a África, origem de tudo, seus deuses vigorosos e ritmos primitivos - fundamentais em sua música. Mas na vastidão que abriga em seu corpo exíguo, ampliou-se para, alegoricamente, definir um país inteiro na sucessão de imagens pop-místicas de Tropicália, para cantar a alma das cidades brasileira (Sampa, Aracaju) ou não (London London ou a Barcelona que inspirou Vaca Profana). Por estar atento às almas - das cidades, dos países, das pessoas, das coletividades - adquiriu (ou sempre teve?) o estranho poder de concentrar às vezes num só verso, todos os mistérios da condição humana. No ato simples de beber um refresco de caju, ele sabe localizar aquela questão que, em todos os tempos, sempre foi a mais fundamental do homem: "Existirmos a que será que se destina?"

Nem a esta, nem a outras perguntas Caetano tem respostas. Elas não cabem no universo dos poetas, dos filósofos, dos antropólogos, dos cientistas sociais, dos psicanalistas ou de todos aqueles que, feito os monges, praticam o ofício de contemplar com amor. Esse olhar - saudoso, furioso, melancólico ou visionário, mas sempre e basicamente amoroso - percorre toda a obra de Caetano. Como aquela linha que reúne os retalhos coloridos e díspares de um patchwork. Ou o triângulo de espelhos que reflete e geometriza contas e pedacinhos de papel nas mandalas de um caleidoscópio.

Esse caleidoscópio-Caetano, você pode girá-lo nas mãos para encontrar subitamente samba e rock. Dalva de Oliveira e Bob Marley, frevo e fado, Amália Rodrigues e John Lennon, bolero e reggae, Elvis Presley e Vicente Celestino. Por ser uma fronteira, aquela que com uma guitarra elétrica dividiu a música brasileira em antes e depois dele, Caetano não tem fronteiras. Depois dele e além dele, mas principalmente dentro dele, foram liberados a todos os riscos e prazeres de provar qualquer dos frutos do Jardim do Éden das maravilhas (e horrores) contemporâneos.


Sobre todos os horrores dos "homens que mataram Pixote" ou "da força da grana que ergue e destrói coisas belas", paira o olhar terno, compreensivo de Caetano. Voltado para a identificação do nobre e do belo que deva existir no humano. Caetano não rejeita a flecha negra do ciúme ou de outra emoção "menos digna" que possa habitar os corações. Canta o escuro e o claro, o puro e o contaminado, o ouro e a lama: são outras palavras, essas, as que provocam a jóia escondida no fundo das mentes abissais das criaturas.

Talvez um dia, num futuro muito remoto, quando algum pesquisador maluco resolver reconstituir com exatidão o perfil de uma época e da sensibilidade humana dentro dessa época, a obra de Caetano possa servir de mapa. Mapa que, apesar de seus dez mil caminhos, concentra-se clara, definida, nesse fato ao mesmo tempo simples e complicado: Caetano Veloso é muitos. Tantos, quanto nós todos somos. Conhecê-lo, do lugar pequeno onde nasceu até o confronto com as ideologias corruptas e manipuladoras, será sempre conhecer um palmo a mais das nossas tantas faces e dessa História - trágica e mágica - que nos cerca.

                                 Caio Fernando Abreu

                                  SP/RJ, agosto de 1989

 

 

 

 


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Nos amávamos tanto




                              Nos amávamos tanto
                        Luiz Antônio Martinez Corrêa, Cacaso, Henfil: 
                           para onde foram aqueles sonhos dourados?

Entre minhas muitas obsessões, existe um poema. Curtinho, absolutamente simples, chama-se Idade Madura e tem apenas estes quatro versos: "Meu coração anda inquieto e sufocado/ Como na infância, nas noites de tempestade./ É risonho o meu futuro? Minha solidão é indescritível". Seu autor: Cacaso. Final do ano passado, aparentemente por razão nenhuma, como acontece com as obsessões grandes ou pequenas, poéticas ou não, o poema voltou com toda força. Eu passava os dias a recitá-lo, debruçado sobre o microcomputador do astrólogo Pedro Tornaghi, no Rio de Janeiro, conscientemente me recusando a ler jornais, ver televisão ou entrar em contato com qualquer meio de comunicação capaz de tornar mais presente esta coisa difícil - o mundo real. Até que não aguentei, arrumei um rádio.

A primeira notícia que o rádio trouxe foi: o diretor teatral Luiz Antônio Martinez Corrêa (era ótimo, dele vi Theatro Musical Brasileiro 1914-1945, talvez o melhor espetáculo em cartaz no Rio), 37 anos, tinha sido assassinado com 80 facadas. Desliguei o rádio. E só saí de casa no dia 30 de dezembro para uma manifestação na praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema. Além da missa de sétimo dia em memória de Luiz Antônio, artistas, intelectuais e nem artistas nem intelectuais, mas apenas pessoas preocupadas com a justiça, pediam providências à polícia contra o assassinato, entre 1984 e 1987, de cerca de 300 homossexuais no país. Sob o sol de quase quarenta graus, muita gente chorava.

O mais irônico era lembrar, naquela pracinha de Ipanema, de 15 ou 20 anos atrás, como aquele espaço tomado por centenas de pessoas (algumas delas estavam lá) coloridas e cheias de vida, acreditando nos novos tempos de paz e amor. Cabeça baixa, a gente lembrava. E nem Chico e Caetano cantando, nem Fernanda Montenegro recitando linduras de Adélia Prado, nem a dignidade de Marieta Severo, nem mesmo o sol, o céu azul de verão, nem mesmo a enorme ciranda da multidão cantando de mãos dadas Aquarela do Brasil ou a chuva de papel picado dos edifícios na Visconde de Pirajá eram capazes de esconder que o horror está solto na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil. Aos gritos ou em silêncio, pediam-se providências para todos esses crimes com características semelhantes (cordas, facadas e asfixia) demais para serem mera coincidência.

Voltei para o microcomputador de Pedro disposto a manter o mundo real à distância, pelo menos até terminar nosso trabalho. E consegui. Caminhar de tardezinha na praia, ao mesmo tempo em que trazia de volta aqueles versos assustados de Cacaso, trazia também os de Adélia, que Fernanda Montengro disse na praça: "A Vida é tão bonita/ basta um beijo/ e o universo se recompõe/ uma necessidade cósmica nos protege". Pois - eu repetia olhando o horizonte do mar - o Senhor não há de abandonar quem, nestes tempos, ainda ousar o beijo e quiser beber dessa beleza da vida. A necessidade é cósmica/ e nos protege. Mas, entre as iluminações de fé, voltavam também, obsessivos, aqueles quatro versos de Cacaso e seu clima de desamparo. E, agora, o que vai acontecer?

Dia de voltar, no aeroporto, comprei uma revista. Lá estava: dias antes, Cacaso tinha morrido de um enfarte fulminante, e eu nem sabia. Então retomar São Paulo, dura sampa estranhamente deserta, as chuvas de verão, certos dias como estar dentro de um oco cheio de espinhos, depois a morte de Henfil, com todo o horror voltando à tona. No caderno Idéias do Jornal do Brasil, no último sábado, numa matéria chamada Nós Que Nos Amávamos Tanto, Wilson Coutinho, Zuenir Ventura e Tárik de Souza fazem um balanço melancólico da geração que viveu aqueles anos dourados de 68. E agora tenta seguir em frente, entre Aids, assassinatos, suicídios, mortes precoces, secas desilusões e escassas esperanças.

Não sei dizer nada cegamente luminoso para encerrar. Perdoe eu não voltar como quem traz um sorriso nos lábios e flores e frutas nas mãos. Mas imagino que você sinta algo semelhantes àquele susto manso do poema do Cacaso e acho que sempre nos podemos olhar nos olhos ao perguntar: "É risonho o nosso futuro?" Então, mesmo sem convicção nem certeza, responder que sim, que sim, que sim. Porque não há de ser inútil, mente.
                  
                            Caderno 2, OESP, 13 de janeiro de 1988

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A CARTA FURIOSA DE CAIO F. PRO PASQUIM



Quem assistiu não esquece Caio Fernando Abreu chamando Rachel de Queiroz de latifundiária e reacionária no programa Roda Viva (o vídeo tá no youtube). Pois esta carta aqui tem o mesmo teor, com a ira santa de Caio voltada ao Pasquim.

O entrevistão de O Pasquim, em 1977
Era 1977. A Codecri, editora do Pasquim, publicou Histórias de Um Novo Tempo, coletânea de contos com seis autores "novíssimos" - Caio Fernando Abreu, um deles. E quatro foram reunidas para uma das célebres entrevistas, com direito a chamada de capa: "A ala jovem da literatura dá seu recado". O Pasquim, então, andava distante dos tempos mais libertários como o da entrevista com Leila Diniz, por exemplo, e havia uma nova geração chegando - Caio, tinha 29 anos e já havia publicado três livros: Inventário Do Irremediável (Contos, 70), Limite Branco (romance, 71) e O Ovo Apunhalado (contos,75), o primeiro a despertar mais atenção.

Com quatro páginas, o entrevistão rendeu uma carta em que Rogério Monteiro dizia que conhecia Caio F. e que ele renderia sozinho muito mais do que os que foram reunidos. A resposta do Pasquim foi debochada (no final). Resultado: Caio Fernando Abreu, furioso, escreveu uma carta para o Pasquim sobre o que achava da entrevista, do reacionarismo do jornal e muito muito mais, praticamente um documento sobre aquele quase final de década quando Rita Lee era presa com maconha, Odara do Caetano Veloso era alvo de "patrulhas ideológicas".... Não lembro de ter lido essa carta em nenhum dos livros publicados sobre ele.

Abaixo a carta de Caio. E no final, a que a originou.


                         A CARTA DE CAIO F. PRO PASQUIM

Porto Alegre, 18 de agosto de 1977
Seu Edélsio (?):

Como não costumo mais ler O Pasquim, somente hoje, através de outra pessoa, tomei conhecimento da carta enviada a vocês por Rogério Monteiro, a respeito da entrevista sobre Histórias de Um Novo Tempo. E também da resposta. Grossa e imbecil como, suponho - já que não perco tempo com imprensa pseudoliberal, chauvinista e reacionária -, costumam ser as respostas de vocês.

Certamente, ou quase, vocês não publicarão esta carta. A não ser com os costumeiros e arbitrários cortes. Ou/e com uma resposta idiota. Antes de mais nada, quero deixar algumas coisas bem claras: não tenho o hábito de escrever para jornais ou revistas (a não ser quando pegam no meu pé) e nem estou querendo aparecer no Pasquim. Caretice por caretice, meu irmão, no final das contas, a Manchete é o mesmo caldo.

"Seu Edélsio" - eu não admitiria nem que Otto Maria Carpeaux (você já ouviu falar?) viesse a dizer que os autores - ou eu, especificamente - de Histórias de Um Novo Tempo - "na base do pau" poderiam "aprender alguma coisa que não fosse ler livrinho ou revistinha estrangeira". Seu moço, eu estou fazendo 29 anos, tenho muita estrada nas costas e não sou nenhum imbecil. Simplesmente dispenso orientações - de quem quer que seja - no meu trabalho de criação literária. Censura basta uma, cara. E vocês confundem descolonização cultural com fechamento cultural: proibir ou criticar a leitura de literatura estrangeira (e você acha que os autores que leio - estrangeiros ou não  - alguma vez escreveram livrinhos?) é exatamente a mesma atitude de baixar censura prévia sobre a imprensa estrangeira. Isso é FECHAMENTO CULTURAL, moço. Isso é FAS-CIS-MO, chê.

E tem mais: eu ia ficar quieto no meu canto porque tenho nojo de intrigas e bastidores literários, mas chega de levar paulada e ficar quieto. É assim que o nosso povo está vivendo há 13 anos.

Eu quero dizer que aquela ridícula entrevista foi CORTADA E DISTORCIDA ARBITRARIAMENTE. Segundo estou informado, um jovem (cujo nome prefiro omitir), dizendo-se autorizado por mim a cortar algumas de minhas declarações foi o autor desse troço. Eu pedi apenas que cortasse o que eu disse sobre (...) (NR - Seu pedido foi atendido). A não que vocês, além de reacionários, sejam também dedos-duros. O que eu não duvidaria. Bem, cortaram tudo. Desde um depoimento - a melhor coisa da noite - do escritor João Silvério Trevisan - até minha reação à agressividade do Cícero Sandroni e a minha resposta a uma pergunta de Félix de Athayde. "Você está defendendo o João Silvério por gostar do livro dele ou porque vocês dois são homossexuais?". Eu respondi: "Eu sou bi-sexuado, Félix. Como todo mundo. Inclusive você. A diferença é que eu admito isso e vocês não".

Olha, moço, eu não tenho moral pública nenhuma a defender. Eu sou exatamente o que sou, ou o que a geração estúpida de vocês fez com que a minha se tornasse. Acontece que neste país, e nesta imprensa moralista, verdade é sinônimo de escândalo. E é, no mínimo lamentável, perceber que justamente vocês, que se supõem tão liberais, venham com esse tipo de atitude MEDIEVAL. Tapar o sol com a peneira, cara? Mas se o mundo tá podre, meu irmão. Se tá tudo caindo aos pedaços e a única coisa a preservar (difícil quando se está em contato com certo tipo de máfia) é uma certa dignidade humana.

São caras como vocês que estão tentando destruir Caetano e Gil. São caras como vocês que provocaram, indiretamente, a loucura, a prisão e a cegueira de Maura Lopes Cançado. São caras como vocês que prenderam Rita Lee. São caras como vocês que expulsaram José Celso Martinez do país. Ou Rogério Sganzerla. Ou Helena Ignez. Ou Julio Bressane. Por não terem se habituado ainda à idéia de que OS TEMPOS SÃO OUTROS, de que a década do 70 tá no fim e todos os conceitos marxistóides de vocês criaram mofo, de que entre a minha geração e a de vocês existe um abismo onde cabem o tropicalismo, os Beatles, os tóxicos, as viagens de carona, as comunidades, a macrobiótica, a ioga, Timothy Leary, a ecologia, o aumento no índice de loucura y otras cositas más. Não há diálogo entre nós porque a mente de vocês é estreita demais.

Quanto ao HISTÓRIAS DE UM NOVO TEMPO, suponho que a Codecri já tenha faturado bastante em cima dos"novíssimos". É bom dizer: a Codecri não nos deu sequer passagem para ir até o Rio (eu moro no Sul, e sou jornalista, e ganho pouco). A Codecri não divulgou o nosso nome nos lançamentos: ficamos sempre à sombra de Otávio Ribeiro e seu Barra Pesada, tratados como "pobres jovens a quem estamos dando uma chance". Eu quero que as chances de vocês vão para o inferno. E se quiserem colocar meu nome no índex do Pasquim (deve ter um, não? pois até o Vaticano tem) eu vou achar até bom.

Talvez eu devesse ser mais contido ou mais brittish (para seu governo, moço: leio inglês, espanhol, italiano, francês, entendo alguma coisa de sueco e estou estudando alemão) - já que para Félix de Athayde não passo de um "inglês de fronteira". Inglês de fronteira que aprendeu na porrada a lidar com gente medíocre e baixo-astral, e que cada dia prefere conhecer mais as plantas e os animais do que seres humanos de um certo tipo.

Eu acho tudo isso péssimo, e gostaria de não ter sido praticamente forçado (por mim mesmo) a escrever esta carta. Mas isso é exatamente o que penso a respeito de vocês, e de toda uma imprensa dita liberal. A gente fica pensando na mysérya do lyberalysmo, de Glauber Rocha. A propósito, vocês já ouviram Nara Leão cantando este Erasmo Carlos: "mas não polua minha cultura / não venha dividir comigo sua autocensura/ me desencontre/ não me prostitua/ Se não seremos mais uma carcaça em desgraça por aí"

Mas a minha (e a de minha geração) grande vingança, bichos, vocês jamais entenderão: é que vocês nunca conseguirão ficar ODARA, entendeu? O mais são lembranças agradáveis do tempo que Luiz Carlos Maciel perdeu fazendo páginas e páginas para vocês.
Meus pêsames.

Sem açúcar nem afeto (P.S.) Rogério Monteiro existe, palhaço, é um jornalista gaúcho que vive em Salvador. Flagrou? Po*** nenhuma.
Caio Fernando Abreu
(Rua Chile, 661, Jardim Botânico/Porto Alegre, RS)
Brittish é com um t só (PS: ESSA FOI A "RESPOSTA" DO PASQUIM)


                            A CARTA DE ROGÉRIO MONTEIRO

BAIANO BOM DE FIBRA, BOM DE CUCA E CORAÇÃO
"Escuta, Edélsio, eu não me ligo nesse negócio de ficar escrevendo cartinhas, mas resolvi uma exceção para levar até vocês - editores de uma das poucas fontes de informação "legíveis" do país - meu protesto pela bundamolice que foi a entrevista "Quatro Histórias do Nosso Tempo" (Pasquim 422). Digo isso porque conheço bem a obra do gaúcho Caio Fernando Abreu e garanto que ele sozinho teria condições de dar um recado melhor nas quatro páginas gastas com a matéria. Dos demais participantes, conheço apenas os trabalhos apresentados no livro editado pela Codecri. Mas acredito que teriam muito mais a dizer e só não o fizeram por serem cortados, agredidos e, principalmente, condicionados pelos entrevistadores (destaque para aquela besta do Cícero Sandroni) a colocar todo papo no plano político direto. Acho que vocês estão velhos e... "ROGÉRIO MONTEIRO" (Salvador (?) BA (?))
Concurso de Contos, "Rogério Monteiro", não é aqui, não. E qualquer tentativa de colocar qualquer papo em qualquer tipo de plano político direto é sempre saudável. "Rogério Monteiro", "você" acha que eles foram agredidos, é? Antes sesse. Ao menos assim poderiam, na base do pau, aprender algumas coisa que não fosse ler livrinho ou revistinha estrangeira. Vá emborgear um cortázar, "Rogério Monteiro". E teu sotaque, além do mais, é de Minas, nunca da Bahia. Te Flagrei, boneco!!!



quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Amizade Telefônica

Ilustração da coluna de Caio F. quando publicada no Caderno 2, em maio de 1986


                                           Amizade telefônica
Palavras, sentido e lógica ganham novos sentidos quando se fala sem se ver

Amigos telefônicos são preciosos. E por isso mesmo, raros. Eu tenho três ou quatro, e bastam. Amigo telefônico é assim: você só fala por ele por telefone. Ou fala pessoalmente também, mas é completamente diferente. Quando você encontra muito seguido um amigo telefônico, a amizade se divide em duas amizades paralelas: a que acontece cara a cara, e a que acontece telefonicamente. Esta sempre mais funda. Há coisas que só se diz por telefone: Telefone elimina rosto, gesto, movimento: a voz fica absoluta. O que a voz diz, ao telefone, é tudo, porque por trás dela não acontece nada como um franzir de sobrancelhas, um riso no canto da boca. E se acontece, você não vê. O que você não vê praticamente não acontece. Ou acontece tão vagamente que é como se não.


A gente recorre a um amigo telefônico quando alguma coisa não cabe por dentro. Não apenas dor - assim, tipo CVV -, porque se fosse isso, virava neurose braba, feia. Depois de um certo ponto de aluguel, vez que você ligasse, então, teu amigo telefônico ia dizer que não estava. Com toda razão. A gente recorre a ele quando alguma coisa boa não cabe dentro sozinha: tem que ser dita.Você liga para dizer que está feliz. Teve uma iluminação, pressentimento, uma fantasia, desejo. As pautas desenvolvidas na amizade telefônica podem ser muito abstratas, entende? E essa é outra das grandes diferenças entre a amizade telefônica e a outra: poder falar de coisas que quase aconteceram. Ou que deviam acontecer. Um pouco como em carta.Antigamente, carta era o equivalente do telefone. Quando não tinha telefone - há muitos, muitos anos - eu tive vários amigos-por-carta. Por, que na carta, também, você diz coisas que, cara a cara, nunca seriam dizíveis.

Amigo telefônico é noturno. A vontade de falar com ele costuma acontecer quando não há mais nada interessante na TV, quando todos os livros e todos discos do mundo não matariam a sede de ouvir uma voz humana dizendo coisas que respondam ou complementem ou rebatam outras coisas que a sua voz vai dizendo. E vai dizendo sem preocupação de ordem, de lógica, de senso. Com amigo telefônico, toda preocupação de parecer lúcido, consciente & equilibrado é inteiramente desnecessária. Se uma terceira pessoa ouvisse um papo entre dois velhos amigos telefônicos, provavelmente acharia completamente louco. Na amizade telefônica, a lógica é tão sutil que parece não existir. Mas existe.

Há também os silêncios. Silêncio de amizade-cara-a-cara quase sempre soa (???) constrangedor. As pessoas desviam os olhos, acendem cigarros, fazem comentários tipo nada-a-ver, só para quebrar o silêncio. Em amizade telefônica, nunca: um fica ouvindo a respiração do outro durante muito tempo. E não precisa dizer nada. A respiração do outro fala olha, estou aqui, está tudo bem, seja o que for, vai dar certo, estou atento ao seu coração, você está atento ao meu, e por estarmos atentos ao coração um do outro, só por isso - ele fica mais leve, o coração.

Agora são sete horas da manhã, estou pensando em meus amigos telefônicos. Mas não telefono. Amigo telefônico costuma dormir até tarde, principalmente às segundas-feiras - porque as noites de domingo - ah, essas: são praticamente telefônicas. E eles são solitários, esses amigos meio estranhos: ouvem vozes. Por isso mesmo, ponho um disco de João Gilberto bem baixinho e dou um beijo à distância na testa de cada um deles. Envio pelo espaço a voz de João para embalá-los nesse sono da manhã feriada e chuvosa. Que nem canção-de-ninar - me liga, tá?

                       OESP, Caderno 2, Terça-feira, 27 de maio de 1986

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Carta anônima



                               Carta anônima

                          Para ler ao som de Melodia Sentimental,
                        de Villa-Lobos, cantada por Olivia Byington

Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos, e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai fazer assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo e estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidros entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas são sempre bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada do que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais frequente, e me deixava irritado, agora não, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuram nos pés delas aqueles que poderiam ser os seus. (A Teus Pés, lembro.) E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam?

Boas e bobas, são as coisas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito poder de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, e tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olivia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagall que Van Gogh, mais Jarmusch que Win Wenders, mais Cecilia Meireles que Nelson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca na minha mão, eu toco na sua. Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse à bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe.

Suspiro tanto quanto penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão frequente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezenquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo.

                   Caderno 2 - Quarta-Feira, 16 de março de 1988